Por Guilherme Santos Mello, no site Brasil Debate:
Em momentos de profunda crise política, é comum se valer da
expressão “marcha da insensatez” para descrever uma sequência de decisões que
levam a uma cadeia de eventos nocivos à sociedade. Seria como se o País
adentrasse em um estado de histeria coletiva, onde a razão dá lugar à paixão e
as decisões são tomadas com o único objetivo de atingir os adversários, não
importando os danos colaterais para o conjunto da sociedade.
Neste sentido, diversas guerras e conflitos armados seriam o
resultado de “marchas da insensatez”, com momentos como a crise dos mísseis de
Cuba podendo ser apontada como o triunfo da política, diplomacia e
racionalidade sobre a histeria que se apodera dos líderes políticos.
Na atual crise política brasileira, poderíamos pleitear, sem
medo de errar, que os principais agentes políticos nacionais adentram uma
“marcha da insensatez”, uma vez que abandonaram qualquer racionalidade sob o
pretexto de destruir os que consideram adversários.
O “vale-tudo” que geralmente toma conta dos períodos eleitorais
se estendeu no tempo e agora se tornou o “novo normal”, o que denota a
derradeira derrota da política e da racionalidade.
Mas este aspecto passional que tomou conta do cenário
político, dominado por “homens-bomba” e radicais de todos os lados, esconde
outra natureza do quadro político atual: por trás de toda insensatez, há muita
desfaçatez. Políticos “racionais” se utilizando do cenário de comoção nacional
para concretizar seus pequenos projetos de poder. Pior, políticos profissionais
se valendo de estratégias mesquinhas e deploráveis, apostando todas as fichas
na certeza da impunidade da justiça e das urnas.
Talvez a figura mais simbólica da “marcha da desfaçatez”
seja o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Flagrado na mentira,
na corrupção e na fraude, mantém expressão serena ao rebater as massacrantes
evidências e aproveita o resto do tempo para ameaçar a república, contando com
o apoio entusiasmado de setores do parlamento e da sociedade, que apostam na
velha máxima de “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”.
Sua desfaçatez é escancarada: até seus defensores mais leais
sabem se tratar de um mentiroso contumaz que se vale do poder em benefício
próprio, em particular em situações como a qual afirmou ter acatado o processo
de impeachment por motivos “técnicos”.
A desfaçatez prossegue quando políticos oposicionistas se
aliam a Cunha em nome do impeachment e do “combate à corrupção”. Quem de fato
acredita que algum cidadão que se alia a Cunha esteja verdadeiramente disposto
a combater a corrupção? A falta de sinceridade fica ainda mais evidente quando
se percebe que o moralismo oposicionista é seletivo: atinge apenas seus
adversários, mas sempre preserva seus aliados.
Os objetivos pessoais dos oposicionistas variam. Algumas
importantes figuras, como José Serra, torcem pelo impeachment de olho em
assumir um importante ministério em um futuro governo Temer, na esperança de
manter vivo seu eterno sonho de ser presidente da República.
Outros, como o Senador Aécio Neves, apostam suas fichas na
esperança de derrubar Dilma e Temer posteriormente, provocando novas eleições,
situação em que ele poderia reverter a derrota eleitoral, que, como criança
mimada, ainda não aceitou. Por fim, Marina Silva aposta na cassação da chapa
Dilma/Temer pelo TSE, pois assim não precisará se envolver com a aprovação de
um evidente golpe, o que poderia manchar sua biografia.
Outro exemplo evidente de desfaçatez foi dado recentemente
pelo vice-presidente Michel Temer, que escreveu uma carta alegadamente
“particular” para Dilma com o objetivo de explicar sua posição diante do
impeachment. Na carta, Temer reclama da perda de espaço no governo e no PMDB,
se colocando na posição de vítima da desconfiança da presidente e afirmando ter
sido um vice apenas “decorativo”.
Quem em sã consciência acreditará que Temer, um político
experiente e aliado de quase todos os governos da República, sempre em altos
cargos de poder e envolvido em nomeações políticas para postos chave dos
governos, é vítima política da inexperiente Dilma Rousseff? Que ser racional
acreditará que o objetivo do vice não é manipular a bancada de seu partido para
deflagrar o golpe, assumir o poder e se proteger (junto com Cunha) das
investigações da Lava-Jato, que se aproximam de seu nome?
Por fim, também há desfaçatez por parte do governo. Em
primeiro lugar, por insistir em adotar a estratégia econômica dos adversários,
se recusando a explicar os verdadeiros motivos por trás desta decisão e se
fechando ao diálogo com as forças que o elegeram. Quem acredita em Dilma quando
ela diz que concluiu que “não há outra saída” além da adoção da política de
Levy?
Em segundo lugar, por insistir em manter a aparência de
aliança e compromisso com políticos que claramente só apoiam o governo por
conveniência, como é o evidente de diversos partidos “aliados”. Há alguma
possibilidade de acreditarmos que Dilma confia de fato no vice golpista ou em
outros políticos achacadores?
Em meio a tanta desfaçatez, o cidadão comum se encontra
perdido, sem saber em quem ou no que acreditar. Algumas mentiras são mais
escancaradas, como as de Cunha; outras mais sutis, como as de Marina. Mas todas
escondem uma sede insaciável pelo poder, que passa por cima de toda e qualquer
preocupação sincera com o país e se explica pelos desejos mesquinhos de seus
personagens.
A desfaçatez e a insensatez se confundem, pois as mentiras e
ações personalistas contribuem para deteriorar o quadro político nacional e
aprofundar a crise brasileira. De fato, essa é uma das consequências desejadas
por alguns, que se valem da crise como forma de apear o inimigo do poder.
Neste sentido, o pior que pode acontecer para o país seria a
aprovação do impeachment da presidente Dilma. Por pior que esteja sendo seu
governo, isso representaria a coroação da desfaçatez e um prêmio pela escalada
da insensatez. Por mais falsas que tenham sido suas promessas eleitorais, Dilma
é uma mulher honesta e não cometeu nenhum crime, fato que não pode ser dito dos
postulantes de sua linha sucessória.
Apoiar o impeachment é se alinhar ao que há de mais vil na
política brasileira hoje, na esperança vã de que uma mudança na Presidência
trará “pacificação” entre as facções rivais que tomam conta do cenário político
nacional. Não haverá pacificação possível neste cenário, uma vez que setores
importantes da sociedade civil se opõem ao golpe.
É um cenário diferente de 1992, quando o conjunto da
sociedade pedia a saída de Collor dadas as evidências claras de crimes
cometidos. A única saída positiva para o Brasil hoje é preservar a democracia,
respeitar o mandato de uma presidente honesta e pressioná-la a alterar os rumos
de seu governo, melhorando também a qualidade de seus aliados.
* Artigo em parceria com a Revista Brasileiros.
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