COLUNA
Uma população frustrada busca inimigos para extravasar sua cólera
E o inimigo é sempre o diferente de nós
RODRIGO
LÔBO/FOTOS PÚBLICAS
Estima-se que o analfabetismo atinja
8,3% da população adulta brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Se levarmos em conta o analfabetismo funcional,
ou seja, a incapacidade de uma pessoa de compreender textos simples e de fazer
operações matemáticas elementares, esse número alcança um em cada três
brasileiros de acordo com o Instituto Paulo Montenegro. Um quadro
estarrecedor, sem dúvida, mas que se torna ainda mais preocupante quando
confrontado com os índices de analfabetismo político, insuficiência que atinge
a sociedade de cima abaixo, independentemente de grau de instrução, classe
social, etnia, religião ou sexo.
Há no excelente longa-metragem alemão Ele está de volta(Er
Ist Wieder Da), que discute o renascimento do nazi-fascismo no
mundo, particularmente na Europa, uma observação terrível. Revivido, Adolf
Hitler passeia, pelas ruas da Alemanha contemporânea,
satisfeito com o fato de que suas ideias nacionalistas, racistas, machistas,
homofóbicas e autoritárias continuam a florescer entre a população, quando
constata: “O povo está calado, mas com raiva. Frustrado com as condições de
vida, como em 1930. Mas na época não havia um termo para isso: analfabetismo
político”.
O analfabetismo político viceja onde falta consciência política – e
consciência política é a relação vital que se estabelece entre mim e meu
próximo. O analfabetismo político é o desinteresse manifestado pelos cidadãos
para o rumo que a classe dirigente empurra a sociedade. Esse
desinteresse se dá por ignorância ou por arrogância ou, pior ainda, por uma
mescla de ignorância com arrogância. Nada pior para um país do que indivíduos
que desdenham da política governados por políticos que desdenham dos indivíduos
– este é o espaço privilegiado para a expansão da mentalidade fascista.
Como não conseguimos resolver nossos problemas enfrentando-os de forma
democrática, optamos por desejar ardentemente um deus ex machina que nos salve e nos conduza. O
legado mais trágico da última ditadura – um episódio de despotismo em meio a
vários outros da nossa infame história política – foi a desmoralização do
conceito de autoridade.
Destituídos os militares, a sociedade, traumatizada pela tirania e pela
arbitrariedade, rejeitou o autoritarismo, mas não conseguiu recuperar a noção
de autoridade. Vivemos assim pendularmente entre a ausência total de autoridade
(o professor na sala de aula, por exemplo) e a hegemonia absoluta do
autoritarismo (a atuação da polícia nas periferias, por
exemplo). Entre um extremo e outro, o vazio do poder.
A omissão do Estado no desempenho de suas atribuições mais básicas,
proporcionar aos cidadãos sistemas de saúde, educação, transporte e segurança
para que ele sobreviva dignamente, leva ao desencanto em relação ao exercício
da política. Aliados à incompetência, a corrupção e o cinismo nos afastam mais
e mais do sentimento de pertencermos a uma mesma comunidade e de partilharmos
interesses comuns. Pouco a pouco, instala-se o ressentimento e a intransigência:
“o povo está calado, mas com raiva”, como adverte o Adolf Hitler do filme Ele está de volta.
Uma população frustrada busca inimigos para extravasar sua cólera. E o
inimigo é sempre o diferente de nós: os homossexuais, os negros, os imigrantes,
osesquerdistas, enfim, qualquer grupo que em um
determinado momento e contexto nos pareça fragilizado o suficiente para levar a
culpa pela nossa incapacidade de gerir os próprios desejos. Assim, em silêncio
e irrefletidamente, abraçamos discursos demagógicos, incitadores do ódio e da
intolerância. A violência que grassa no país – nas ruas, dentro das casas, nas
redes sociais – é apenas a face visível deste monstro subterrâneo chamado
fascismo, fenômeno que se alimenta de analfabetos políticos.
Luiz Ruffato é
escritor e jornalista. Escreve semanalmente no EL PAÍS.
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