quarta-feira, 4 de outubro de 2017

A ultradireita da Alemanha repete caminhos já trilhados


Wolfang Rattay/Reuters
 
 


Os resultados da eleição alemã foram só um pouco piores que os previstos pelas pesquisas mais recentes, mas ainda assim causaram um terremoto político cujos efeitos prejudicam a integração europeia e, especialmente, o projeto de Emmanuel Macron.

Os social-democratas (SPD), que no primeiro trimestre de 2017 – talvez ajudados pela reação inicial de rejeição europeia a Donald Trump – chegaram a ameaçar a reeleição de Angela Merkel e acreditar na vitória, acabaram duramente punidos por sua associação quase passiva com os conservadores, que quase só lhes rendeu a criação de um salário mínimo, mesmo assim inferior ao de vizinhos como França, Bélgica e Holanda.

Obtiveram 20,5% dos votos, o pior resultado em eleições livres desde 1932 e apenas 153 dos 709 assentos. A aliança conservadora CDU-CSU de Merkel foi a mais votada, com 32,9%, mas esse é o seu pior resultado desde 1949 e os 246 assentos obtidos estão desconfortavelmente longe da maioria.

Como em muitos outros países europeus, o bipartidarismo está em crise: essas duas forças, que já somaram 70% a 80% dos votos, conseguiram desta vez pouco mais que a metade.

A Esquerda e os Verdes tiveram um crescimento marginal e receberam 9,2% e 8,9%, 69 e 67 assentos, respectivamente. Os liberais têm a comemorar uma recuperação de 4,8% para 10,7%, o suficiente para retornar ao Parlamento com 80 deputados, mas a ultradireita é, em termos relativos, a maior vencedora: a Alternativa para a Alemanha (AfD), fundada em 2013, saltou de 4,7% para 12,6% e tornou-se a terceira força política e parlamentar, com 94 representantes.

Podem-se ler comentaristas segundo os quais a Alemanha apenas se tornou um país normal, porque os outros países europeus também têm partidos de ultradireita.

É um raciocínio enganoso, em primeiro lugar, porque vários não os têm – em Portugal, na Espanha e na Irlanda, por exemplo, não existe nenhum partido comparável com votação relevante ou presença no Parlamento – e, em segundo, porque a história desse país não é como a dos outros.

Outra análise falaciosa é culpar a antiga Alemanha Oriental. A AfD teve ali uma votação proporcionalmente maior – 20,5% ante 10,7% na antiga Alemanha Ocidental –, mas é totalmente falso dizer que a maior parte de seus votos veio dessa região, que representa (incluindo a antiga Berlim Oriental) apenas 17% da população total.

Na Saxônia, no leste, a AfD teve 27% e ali superou até a CDU, que teve 26,9%, mas, em termos absolutos, bastaram dois estados ocidentais, Renânia-Vestfália e Baviera, para somar mais votos para a ultradireita do que toda a Alemanha Oriental.

Feitas as contas, 70% dos votos na AfD vieram da antiga Alemanha Ocidental. O problema não é regional, e sim nacional.

A AfD surgiu em 2013 não como uma campanha populista anti-imigração, mas com uma campanha de intelectuais e pequenos empresários contra o euro e a União Europeia, em reação ao socorro articulado pelo governo de Merkel aos países da periferia europeia abalados pela crise de 2008, a começar pela Grécia.

Entretanto, desde a reunificação alemã de 1991 sentia-se a rejeição à imigração muçulmana (inicialmente turca) e em 2004 surgiu o Pegida como movimento islamofóbico populista, no princípio sem relação com a AfD.

Foi durante 2015 que a AfD viu na inquietação popular com a chegada repentina de mais de 1 milhão de refugiados, na maioria muçulmanos, uma arma contra Merkel e o status quo. Os ataques contra mulheres em algumas cidades alemãs ocidentais no réveillon de 2016, muito exagerados pela mídia, parecem ter dado um grande impulso ao partido.

Tratava-se de convencer os alemães de que a culpa de seus problemas é dos outros, não importa se gregos ou sírios. Mas esse discurso, inicialmente apoiado pelo partido por oportunismo, acabou por dominá-lo a tal ponto e ganhar conotações tão explicitamente racistas e intolerantes que Frauke Petry, que dirigiu o partido de julho de 2015 a abril de 2017, rompeu com este após a eleição e se declarou independente, queixando-se de os moderados estarem sendo nele desacreditados.

Os novos líderes, desde abril, são Alexander Gauland e Alice Weidel. O primeiro, que nasceu na Saxônia, mas fugiu para o Ocidente na adolescência e começou a carreira política em Frankfurt, é um neofascista convencional.

Afirmou que nenhum alemão gostaria de ter como vizinho Jérôme Boateng – berlinense negro, filho de ganês e ídolo da seleção alemã – e que o país deveria se orgulhar das conquistas de seus soldados nas duas guerras mundiais. Weidel, da Renânia-Vestfália, é menos convencional e dá a seu partido um toque cosmético de modernidade e tolerância, pois é mulher, trabalhou pela globalização em bancos estrangeiros – Goldman Sachs e o Banco da China, nada menos – é lésbica, tem uma relação estável com uma estrangeira e cria com ela duas crianças.

Mas nada disso a impede de aderir ao discurso do partido contra o casamento homossexual e pedir a deportação de imigrantes.

A dupla redescobriu caminhos já trilhados. Nos anos 1930, havia uma crise financeira e os nazistas reduziram uma questão complexa a uma guerra cultural e racial, pouparam os verdadeiros privilegiados e fizeram de uma minoria étnica o bode expiatório do mal-estar econômico.
O ódio a uma raça, fácil de alimentar e dirigir, substitui a ansiedade com a desestabilização de modos de vida e as implicações econômicas da competição internacional.

A votação na AfD não está relacionada à presença concreta de imigrantes, e sim ao estado da economia. Há poucos imigrantes na Alemanha Oriental, mas, um quarto de século após uma unificação economicamente malsucedida, seu desemprego ainda é muito mais alto e sua renda mais baixa.

Por isso, expressa mais intensamente a insatisfação e as contradições alemãs e dá mais espaço tanto à ultradireita quanto à esquerda radical.

Neste estágio, a maioria dos eleitores da ultradireita não necessariamente endossa teorias conspiratórias sobre os planos do Islã para escravizar a Europa e a raça branca em aliança com financistas internacionais, mas as usa como voto de protesto, ao julgar que seus problemas são ignorados pelos grandes partidos.

Isso pode mudar, porém, à medida que o discurso da ultradireita for normalizado pela presença no Parlamento e na mídia.

Merkel, certamente, não minimiza a gravidade do momento, tanto que transferiu seu braço direito Wolfgang Schäuble do Ministério da Fazenda, de onde, desde 2009, praticamente do início da crise, comandava as finanças e a austeridade da Alemanha e impunha sua vontade ao resto da Europa, para o cargo agora ainda mais crítico de presidente do Parlamento.

Ela deve tentar usar o mais poderoso dos ministérios para selar uma coalizão, negociação que provavelmente a ocupará até os primeiros meses de 2018.

O SPD decidiu deixar o governo e, por mais que seja pressionado a mudar de ideia, só terá chances de sobreviver e tentar recuperar seu prestígio se criticar o governo pela esquerda, pois a “terceira via” centrista ficou insustentável na Alemanha, se não em toda a Europa. Isso ao menos tira da AfD a posição de maior partido de oposição, situação na qual as normas do Parlamento lhe dariam mais voz e influência.

Entretanto, deixa a conservadora CDU-CSU numa situação difícil, pois só conseguirá maioria caso se alie simultaneamente ao FDP e aos Verdes, aliança apelidada de “Jamaica” pelas cores preta, amarela e verde dos três partidos.

É misturar água e óleo, pois as posições dos Verdes são opostas às dos conservadores e mais ainda às dos liberais em temas como regulamentação ambiental, energia, transportes e indústria automobilística.

Além disso, ceder demais à FDP, com suas políticas pró-empresariais de redução de impostos e corte de gastos públicos, poder fortalecer o discurso da direita populista, ou da esquerda radical. A outra opção é Merkel governar em minoria e apostar no apoio do SPD, FDP e Verdes em questões críticas, o que é possível, mas deixará seu governo de mãos atadas boa parte do tempo.

Talvez mais importante, a situação forçará Merkel em seu quarto mandato, em princípio até 2021, a deixar as questões europeias em segundo plano para se concentrar na política interna.

Se antes já era improvável qualquer iniciativa mais generosa ou ousada pela integração da União Europeia e apoio a seus integrantes mais fracos, agora ficou praticamente inconcebível.

Isso enfraquece a organização ante os desafios do Brexit, dos nacionalismos e neofascismos da Europa central e oriental e dos problemas financeiros ainda pendentes da Grécia e Itália.

Emmanuel Macron falará sozinho sobre seus projetos de criar um orçamento da Zona do Euro, com seu próprio Parlamento e ministro da Fazenda, que nunca entusiasmou Merkel ou Schäuble e ao qual o FDP se opõe frontalmente.

Terá de tentar obrigar os franceses a engolir reformas trabalhistas e cortes de gastos sociais sem poder oferecer maior cooperação alemã e europeia para abrir novos horizontes sociais e econômicos.

Ou seja, seu discurso será esvaziado do aspecto supostamente centrista e reduzido a neoliberalismo sem atenuantes, o que dá oportunidade tanto à esquerda militante liderada por Jean-Luc Mélenchon, à frente dos protestos contra as reformas, quanto à ultradireita de Marine Le Pen.

Como se não bastasse, obteve resultados fracos na eleição indireta do Senado no domingo 24 – seu partido obteve apenas 29 dos 348 assentos –, que fortaleceram a direita tradicional.



* jornalista e editor internacional da Carta Capital 

Fonte: Carta Capital 


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