Wolfang Rattay/Reuters
Mais uma vez, o extremismo cresce ao encontrar nas minorias um bode expiatório da crise
Os resultados da eleição alemã foram só um pouco piores que os previstos pelas pesquisas mais recentes, mas ainda assim causaram um terremoto político cujos efeitos prejudicam a integração europeia e, especialmente, o projeto de Emmanuel Macron.
Os social-democratas (SPD), que no primeiro trimestre de 2017 – talvez ajudados pela reação inicial de rejeição europeia a Donald Trump – chegaram a ameaçar a reeleição de Angela Merkel e acreditar na vitória, acabaram duramente punidos por sua associação quase passiva com os conservadores, que quase só lhes rendeu a criação de um salário mínimo, mesmo assim inferior ao de vizinhos como França, Bélgica e Holanda.
Obtiveram 20,5% dos votos, o pior resultado em eleições livres desde 1932 e apenas 153 dos 709 assentos. A aliança conservadora CDU-CSU de Merkel foi a mais votada, com 32,9%, mas esse é o seu pior resultado desde 1949 e os 246 assentos obtidos estão desconfortavelmente longe da maioria.
Como em muitos outros países europeus, o bipartidarismo está em crise: essas duas forças, que já somaram 70% a 80% dos votos, conseguiram desta vez pouco mais que a metade.
A Esquerda e os Verdes tiveram um crescimento marginal e receberam 9,2% e 8,9%, 69 e 67 assentos, respectivamente. Os liberais têm a comemorar uma recuperação de 4,8% para 10,7%, o suficiente para retornar ao Parlamento com 80 deputados, mas a ultradireita é, em termos relativos, a maior vencedora: a Alternativa para a Alemanha (AfD), fundada em 2013, saltou de 4,7% para 12,6% e tornou-se a terceira força política e parlamentar, com 94 representantes.
Podem-se ler comentaristas segundo os quais a Alemanha apenas se tornou um país normal, porque os outros países europeus também têm partidos de ultradireita.
É um raciocínio enganoso, em primeiro lugar, porque vários não os têm – em Portugal, na Espanha e na Irlanda, por exemplo, não existe nenhum partido comparável com votação relevante ou presença no Parlamento – e, em segundo, porque a história desse país não é como a dos outros.
Outra análise falaciosa é culpar a antiga Alemanha Oriental. A AfD teve ali uma votação proporcionalmente maior – 20,5% ante 10,7% na antiga Alemanha Ocidental –, mas é totalmente falso dizer que a maior parte de seus votos veio dessa região, que representa (incluindo a antiga Berlim Oriental) apenas 17% da população total.
Na Saxônia, no leste, a AfD teve 27% e ali superou até a CDU, que teve 26,9%, mas, em termos absolutos, bastaram dois estados ocidentais, Renânia-Vestfália e Baviera, para somar mais votos para a ultradireita do que toda a Alemanha Oriental.
Feitas as contas, 70% dos votos na AfD vieram da antiga Alemanha Ocidental. O problema não é regional, e sim nacional.
A AfD surgiu em 2013 não como uma campanha populista anti-imigração, mas com uma campanha de intelectuais e pequenos empresários contra o euro e a União Europeia, em reação ao socorro articulado pelo governo de Merkel aos países da periferia europeia abalados pela crise de 2008, a começar pela Grécia.
Entretanto, desde a reunificação alemã de 1991 sentia-se a rejeição à imigração muçulmana (inicialmente turca) e em 2004 surgiu o Pegida como movimento islamofóbico populista, no princípio sem relação com a AfD.
Foi durante 2015 que a AfD viu na inquietação popular com a chegada repentina de mais de 1 milhão de refugiados, na maioria muçulmanos, uma arma contra Merkel e o status quo. Os ataques contra mulheres em algumas cidades alemãs ocidentais no réveillon de 2016, muito exagerados pela mídia, parecem ter dado um grande impulso ao partido.
Tratava-se de convencer os alemães de que a culpa de seus problemas é dos outros, não importa se gregos ou sírios. Mas esse discurso, inicialmente apoiado pelo partido por oportunismo, acabou por dominá-lo a tal ponto e ganhar conotações tão explicitamente racistas e intolerantes que Frauke Petry, que dirigiu o partido de julho de 2015 a abril de 2017, rompeu com este após a eleição e se declarou independente, queixando-se de os moderados estarem sendo nele desacreditados.
Os novos líderes, desde abril, são Alexander Gauland e Alice Weidel. O primeiro, que nasceu na Saxônia, mas fugiu para o Ocidente na adolescência e começou a carreira política em Frankfurt, é um neofascista convencional.
Afirmou que nenhum alemão gostaria de ter como vizinho Jérôme Boateng – berlinense negro, filho de ganês e ídolo da seleção alemã – e que o país deveria se orgulhar das conquistas de seus soldados nas duas guerras mundiais. Weidel, da Renânia-Vestfália, é menos convencional e dá a seu partido um toque cosmético de modernidade e tolerância, pois é mulher, trabalhou pela globalização em bancos estrangeiros – Goldman Sachs e o Banco da China, nada menos – é lésbica, tem uma relação estável com uma estrangeira e cria com ela duas crianças.
Mas nada disso a impede de aderir ao discurso do partido contra o casamento homossexual e pedir a deportação de imigrantes.
A dupla redescobriu caminhos já trilhados. Nos anos 1930, havia uma crise financeira e os nazistas reduziram uma questão complexa a uma guerra cultural e racial, pouparam os verdadeiros privilegiados e fizeram de uma minoria étnica o bode expiatório do mal-estar econômico.
O ódio a uma raça, fácil de alimentar e dirigir, substitui a ansiedade com a desestabilização de modos de vida e as implicações econômicas da competição internacional.
A votação na AfD não está relacionada à presença concreta de imigrantes, e sim ao estado da economia. Há poucos imigrantes na Alemanha Oriental, mas, um quarto de século após uma unificação economicamente malsucedida, seu desemprego ainda é muito mais alto e sua renda mais baixa.
Por isso, expressa mais intensamente a insatisfação e as contradições alemãs e dá mais espaço tanto à ultradireita quanto à esquerda radical.
Neste estágio, a maioria dos eleitores da ultradireita não necessariamente endossa teorias conspiratórias sobre os planos do Islã para escravizar a Europa e a raça branca em aliança com financistas internacionais, mas as usa como voto de protesto, ao julgar que seus problemas são ignorados pelos grandes partidos.
Isso pode mudar, porém, à medida que o discurso da ultradireita for normalizado pela presença no Parlamento e na mídia.
Merkel, certamente, não minimiza a gravidade do momento, tanto que transferiu seu braço direito Wolfgang Schäuble do Ministério da Fazenda, de onde, desde 2009, praticamente do início da crise, comandava as finanças e a austeridade da Alemanha e impunha sua vontade ao resto da Europa, para o cargo agora ainda mais crítico de presidente do Parlamento.
Ela deve tentar usar o mais poderoso dos ministérios para selar uma coalizão, negociação que provavelmente a ocupará até os primeiros meses de 2018.
O SPD decidiu deixar o governo e, por mais que seja pressionado a mudar de ideia, só terá chances de sobreviver e tentar recuperar seu prestígio se criticar o governo pela esquerda, pois a “terceira via” centrista ficou insustentável na Alemanha, se não em toda a Europa. Isso ao menos tira da AfD a posição de maior partido de oposição, situação na qual as normas do Parlamento lhe dariam mais voz e influência.
Entretanto, deixa a conservadora CDU-CSU numa situação difícil, pois só conseguirá maioria caso se alie simultaneamente ao FDP e aos Verdes, aliança apelidada de “Jamaica” pelas cores preta, amarela e verde dos três partidos.
É misturar água e óleo, pois as posições dos Verdes são opostas às dos conservadores e mais ainda às dos liberais em temas como regulamentação ambiental, energia, transportes e indústria automobilística.
Além disso, ceder demais à FDP, com suas políticas pró-empresariais de redução de impostos e corte de gastos públicos, poder fortalecer o discurso da direita populista, ou da esquerda radical. A outra opção é Merkel governar em minoria e apostar no apoio do SPD, FDP e Verdes em questões críticas, o que é possível, mas deixará seu governo de mãos atadas boa parte do tempo.
Talvez mais importante, a situação forçará Merkel em seu quarto mandato, em princípio até 2021, a deixar as questões europeias em segundo plano para se concentrar na política interna.
Se antes já era improvável qualquer iniciativa mais generosa ou ousada pela integração da União Europeia e apoio a seus integrantes mais fracos, agora ficou praticamente inconcebível.
Isso enfraquece a organização ante os desafios do Brexit, dos nacionalismos e neofascismos da Europa central e oriental e dos problemas financeiros ainda pendentes da Grécia e Itália.
Emmanuel Macron falará sozinho sobre seus projetos de criar um orçamento da Zona do Euro, com seu próprio Parlamento e ministro da Fazenda, que nunca entusiasmou Merkel ou Schäuble e ao qual o FDP se opõe frontalmente.
Terá de tentar obrigar os franceses a engolir reformas trabalhistas e cortes de gastos sociais sem poder oferecer maior cooperação alemã e europeia para abrir novos horizontes sociais e econômicos.
Ou seja, seu discurso será esvaziado do aspecto supostamente centrista e reduzido a neoliberalismo sem atenuantes, o que dá oportunidade tanto à esquerda militante liderada por Jean-Luc Mélenchon, à frente dos protestos contra as reformas, quanto à ultradireita de Marine Le Pen.
Como se não bastasse, obteve resultados fracos na eleição indireta do Senado no domingo 24 – seu partido obteve apenas 29 dos 348 assentos –, que fortaleceram a direita tradicional.
* jornalista e editor internacional da Carta Capital
Fonte: Carta Capital
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