Uma luta histórica
das argentinas assegurará o direito das mulheres fazerem um aborto seguro,
legal e gratuito.
por Ana Prestes
Publicado 30/12/2020 17:15 | Editado 30/12/2020 17:21
Foto: Agustin Marcarian/Reuters
A história da
penalização do aborto na Argentina começou em 1886 com a sanção do primeiro
Código Penal. Nele, a prática era penalizada em qualquer hipótese. Em 1903, com
a reforma do código, há um pequeno avanço, os casos de tentativa de aborto não
seriam mais punidos. A partir de 1921, uma segunda reforma do código passa a
estabelecer que o aborto não seria penalizado no caso de se fazer necessário
para evitar risco de vida à gestante, também quando a gravidez fosse fruto de
estupro ou violação de vulnerável, como mulheres com adoecimento mental. Em
1937, se apresentou o primeiro projeto parlamentar para reverter a
criminalização e buscar a garantia do Estado para o direito de interromper a
gravidez. Desde então, inúmeras vezes projetos para a legalização chegaram ao
Congresso, sendo que em 2018 foi a primeira vez que um projeto chegou a ser
votado nas duas casas parlamentares, Câmara e Senado, e por apenas sete votos
não foi aprovado.
O projeto mais
semelhante ao aprovado hoje, 30 de dezembro de 2020, surgiu em 2007, fruto da
articulação da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto. Nele, era apresentada
a proposta de despenalização e legalização do aborto por decisão da mulher até
as doze semanas de gestação. O dia escolhido, 27 de maio, era também o Dia
Internacional da Ação pela Saúde das Mulheres. Em 2019, ano eleitoral e doze
anos após a primeira apresentação do projeto, a Campanha apresentava sua oitava
versão do projeto. Os candidatos foram obrigados a se posicionar, pois após a
votação histórica de 2018 e com uma estreita derrota do projeto por sete votos
no Senado, após ter sido aprovado na Câmara, o tema estava na boca do povo.
Ainda candidato, o presidente Alberto Fernández foi o primeiro na história
argentina a se comprometer a enviar ao parlamento, logo no início do seu
mandato, um projeto de lei de despenalização e legalização da interrupção
voluntária da gravidez. Eleito, era a primeira vez na história do país
sul-americano que um presidente se posicionava a favor do aborto. Sua abordagem
foi principalmente a de localizar o tema dentro dos debates sobre saúde pública
e direitos humanos.
O ano de 2020
começou com um gigante pañuelazo, que é o nome que se deu às grandes marchas
com o lenço verde desde o início dos anos 2000 e que virou marca da Campanha,
no dia 19 de Fevereiro – Dia de Ação Verde pelo Direito ao Aborto. Logo vieram
também as atividades do 8 de março e era grande a expectativa de que o projeto
entraria no Congresso já em março, no início do ano legislativo argentino. O
presidente Fernández chegou a dizer no dia de abertura dos trabalhos do
Congresso que em dez dias enviaria o projeto. Mas havia uma pandemia no meio do
caminho. Todas as atenções do país e do mundo se voltaram para os cuidados com
a prevenção e atenção à saúde dos infectados pelo novo coronavírus que tão
fortemente impactou a vida em todo planeta em 2020. Somente em setembro, no dia
28, Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina
e Caribe, é que o presidente Fernández se comprometeu uma vez mais a atuar pela
legalização do aborto no país. Os meses entre março e setembro não foram, no
entanto, de descanso para as inúmeras militantes da causa no país. Se há algo
que elas têm deixado como legado nessa última década e meia é a persistir e
inovar nos caminhos da luta. Incorporaram-se às comissões criadas para o
aperfeiçoamento do projeto a ser apresentado pelo executivo. Fizeram muita
política conversando com cada parlamentar. Mantiveram as bases ativas nos
bairros, nas cidades, nas províncias e as assembleias nacionais operando.
Fruto desse
engajamento, muita política e mobilização, nasceu um projeto melhor do que o
votado em 2018. Com menos arestas, mais amplo, inclusivo e difícil de ser
combatido principalmente pela oposição fundamentalista religiosa. Com destaque
para a conjugação com projeto 1000 dias, que garante assistência plena do
Estado às gestantes de baixa renda, do pré-natal até os 3 anos da criança,
fundamental para evitar que a interrupção da gravidez se dê por falta de
perspectiva de sobrevivência econômica. Outro tema aperfeiçoado foi o do
tratamento dispensado aos casos de “objeção de consciência” quando o médico se
recusa a realizar o aborto por alegar ser contra seus princípios ou religião.
Nesses casos, o profissional poderá transferir a paciente para um colega, desde
que a pessoa gestante não esteja correndo risco de vida.
Em resumo, a Lei de
Interrupção Voluntária da Gravidez despenaliza e legaliza o aborto que seja
solicitado pela gestante que tenha a partir de 16 anos e quando realizado
dentro das primeiras 14 semanas de gestação. Fora desse prazo, somente em casos
de perigo de vida ou da saúde integral da gestante. A rede de saúde pública
estará preparada para receber estas mulheres e executar o procedimento em até
10 dias após o pedido. O aborto passa a ser seguro, legal e gratuito. Estão
abarcadas as mulheres e pessoas de outras identidades de gênero com capacidade
de gerar vida. Está garantida a atenção pós-aborto, também pelo sistema de
saúde pública. No caso de menores de 13 anos, deverá haver consentimento e
acompanhamento de pelo menos um dos pais ou representante legal. Adolescentes
de 13 a 16 deverão estar acompanhadas. Está garantido o direito do profissional
de saúde à objeção de consciência. Não será permitido alegar objeção de
consciência na atenção sanitária pós-aborto. O Estado fica com a
responsabilidade de implementar a lei 26.150 de Educação Sexual Integral, assim
como estabelecer políticas ativas de promoção e fortalecimento da saúde sexual
e reprodutiva de toda a população.
Para mim, que venho
acompanhando essa luta há tantos anos, tanto por ser internacionalista como
feminista, fica a lição de que elas, as mulheres argentinas, tiveram muita sabedoria
nessa construção. Não há como olhar para o movimento e não perceber que ele é
coletivo. As manifestações parecem as mesmas, na narrativa, na estética, na
pluralidade, na mistura de idades, cores e proveniências de classe, seja em
Rosário, Córdoba, B. Aires, Jujuy… não se percebe titularidade individual e
mesmo organizativa que tenha sobressaído, embora haja discordâncias, debates,
consensos suados. O que se vê é um corpo de constituição social que se move
sempre em frente. Ergue-se rapidamente após as derrotas e segue. E faz
política! Para a votação de 2020, conjugou o projeto do aborto com o projeto
dos 1000 dias e abriu possibilidade para a objeção de consciência de médicos
contrários ao procedimento. Soube ceder para avançar. Soube persistir, ser resiliente,
alegre e de luta em tempos sombrios de pandemia. Como elas próprias dizem,
“nossas avós nos garantiram o direito ao voto, nossas mães ao divórcio, e nós
deixamos para nossas filhas o direito de decidir”.
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AUTOR
Ana Prestes é cientista social. Mestre e doutora em Ciência Política
pela UFMG. Dirigente nacional do PCdoB. E neta de Luiz Carlos Prestes.
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