“Em 2000, 12% das
empresas estatais tinham esse tipo de participação acionária em empresas
privadas. Em 2020, esta participação chegou a 25%”
por Luiz Gonzaga
Belluzzo e Elias Jabbor
Publicado 18/12/2020 11:51 | Editado 18/12/2020 12:02
(Foto: Reprodução)
Direto ao ponto.
Trabalho escrito e publicado muito recentemente (“Special Deals from Special
Investors: The Rise of State-Connected Private Owners in China”. NBER) por
pesquisadores chineses sediados em diferentes universidades da própria China e,
também, dos EUA, apontam para o surgimento e desenvolvimento de um novo tipo de
empresa privada. Trata-se de uma forma privada de propriedade com crescente
participação acionária do Estado (“politically-connected investor”). Este
processo é amplo e racional. Em 2000, 12% das empresas estatais tinham esse
tipo de participação acionária em empresas privadas. Em 2020, esta participação
chegou a 25%. As estatais, em média, tinham investimentos com seis empresas privadas
em 2000. Em 2015 esse portfólio alcançou a média de 15 empresas por investidor
estatal.
Essa ação de
guarda-chuva do Estado tem um efeito cascata. Pois, leva à tendência das
empresas privadas turbinadas pela participação acionária estatal estender seus
vínculos a empresas privadas menores, elevando o grau de centralização
empresarial no setor privado do país. No final das contas como podemos
interpretar essa não oficial “estatização em desapropriação”? Neste espaço
deixaremos de lado uma visão que alimenta o subjetivo irracional do policymaker
norteamericano e sua crescente paranoia em relação à China. Vamos por outro
caminho.
Ao menos dois
grandes autores sustentaram por décadas em sofisticadas e conhecidas
publicações a completa conversão chinesa à “economia de mercado”. Barry
Naughton desde “Growing out of the plan” (1995) até “The Chinese econonomy:
transitions and growth” (2007) e Nicholas Lardy em uma série de publicações com
destaque ao “Markets over Mao” (2014) sustentaram as narrativas que alimentam
muito do que o senso comum ortodoxo pensa sobre a China. Por outro lado, esses
mesmos autores, recentemente, passaram a perceber uma inesperada “mudança de
rumos” com a elevação da presença do Estado sobre os pontos fulcrais da
economia chinesa. Naughton em “Is China socialist?” (2017) se pergunta se a
China não teria restaurado o socialismo. Lardy (2019) joga com a hipótese do
“fim das reformas” em seu interessante livro “The State Strikes Back: The End
of Economic Reform in China?” (2019). Que tipo de processo esses autores não
perceberam? Em que eles “erraram”?
É muito complicado
falar em erros ou acertos, mas de problemas de origem. Vejamos. Deveria ser
muito evidente que o processo de reformas econômicas na China não estava sendo
encaminhada por nenhuma mão invisível. O Estado construiu uma economia de
mercado nas zonas rurais levando ao surgimento de um crescimento mercantil
virtuoso, baseado no consumo e na conversão industrial de antigas unidades
produtivas industriais/rurais em grandes empresas de cantão e povoado,
precocemente ligadas ao mercado externo. O que Robert Wade chamou de
“governando através do mercado” foi a chave ao surgimento de novos esquemas de
divisão social do trabalho nas zonas rurais chinesas desde 1978. Nas cidades,
um poderoso setor privado, de fato, foi emergindo no país desde então
impulsionado, também, pela transferência de ativos estatais a entes privados em
meados da década de 1990.
O que mais importa
é o filme. Em meio a este aparente big bang poucos se deram
conta de que a ação estatal foi ganhando em qualidade desde 1978. Primeiro,
preparando seu território para abrigar milhares de empresas estrangeiras em
zonas econômicas especiais escolhidas a dedo desde 1980. Em seguida, e em plena
década de 1990, criou seus grandes bancos de desenvolvimento, reconstruiu seu
setor produtivo estatal formado, à época, por quase duas centenas de
conglomerados (hoje são 96). Ainda na década de 1990, maxidesvalorizou sua taxa
de câmbio e fechou sua conta de capitais. Uma moderna (e estatal) economia
monetária de produção estava sendo formada
A quem acompanhou
de perto esse processo não se surpreendeu com sua contraparte: centenas de
empresas estatais executaram um ensaio geral de intervenção em massa do Estado
na economia com o programa do “Grande Desenvolvimento do Oeste” lançado em
1999, transformando o desenvolvimento econômico em ação coordenada para
diminuição das desigualdades regionais. Em 2003 surge a SASAC (State-owned
Assets Supervision and Administration Commission of the State Council) com a
missão de transformar as estatais chinesas em grandes players internacionais.
Recém-lançado livro
do economista italiano Alberto Gabriele (“Enterprises, Industry and Innovation
in the People’s Republic of China – Questioning Socialism from Deng to the
Trade and Tech War”. Springer, 2020) não apenas problematiza os conceitos de
capitalismo e o socialismo quanto demonstra, aproximando-se de nossa visão, que
a China é algo diferente, tratando-se da primeira experiência de uma nova
classe de formações econômico-sociais. Sofisticado, Gabriele abre inúmeras
possibilidades de novos e poderosos argumentos.
Seguindo a trilha
de Gabriele, esta nova formação econômico-social não seria síntese de quatro
décadas em que de forma paciente os chineses foram lançando ondas de inovações
institucionais que foram levando o Estado a um cada vez maior “protagonismo
qualitativo”, incluindo desde a construção de musculosos braços produtivos e
financeiros estatais, passando pela incorporação – via estatais – à economia
real de novos aportes em matéria de planificação econômica até a tendência
apontada pelos autores do trabalho citado no começo deste texto? Ou seja, uma
nova forma histórica de propriedade privada não estaria surgindo na China
demonstrando os equívocos de quem analisa a propriedade privada partindo de sua
forma pós-leis dos cercamentos ingleses?
Luiz Gonzaga
Belluzzo é professor titular do IE-Unicamp
Elias Jabbour é
professor do Programas de Pós-Graduação em Economia (PPGCE) e em Relações
Internacionais (PPGRI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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