Dois anos de desgoverno: os efeitos da antipolítica
Do Portal Vermelho
Ainda que o
bolsonarismo seja derrotado politicamente – e essa chance existe –, ele continuará
a existir como movimento e a tensionar a democracia brasileira
Publicado 10/01/2021 16:52 | Editado 11/01/2021 10:09
Bolsonaro é o
terceiro outsider da direita brasileira que chega à presidência nos últimos 60
anos. Jânio Quadros e Fernando Collor o antecederam. Os dois não completaram
seus mandatos. Jair Bolsonaro possui uma diferença fundamental em relação aos
outros dois que também se elegeram destacando a luta contra a corrupção e
tentando traçar uma relação entre esquerda e corrupção no governo: o
bolsonarismo tem traços maiores de movimento do que de forma de governo e o
presidente tem atuado desde o início da pandemia na tentativa de acentuar o
lado movimentalista do bolsonarismo, tal como assistimos na sua já notória ida
a Praia Grande na manhã do dia 4 de janeiro para cumprimentar todos aqueles que
furavam o isolamento social e não usavam máscara protetora.
Nessa breve
avaliação dos dois anos de governo Bolsonaro, irei defender uma tese: o
bolsonarismo é tanto um movimento quanto uma forma de governo; o presidente
gosta mais da parte movimentalista do bolsonarismo, mas a sobrevivência do
bolsonarismo será determinada pela sua capacidade de governar. Bolsonaro
tornou-se presidente sem ter qualquer capacidade para exercer o cargo. Na
verdade, o Bolsonarismo não surgiu como uma forma de governo e não faz parte da
proposta do capitão tentar governar. A anticandidatura pífia à presidência da
câmara em 2017 para a qual Bolsonaro recebeu quatro votos, a mudança constante
de partidos e uma verborragia extremista pareciam garantir essa posição.
Como já tive
oportunidade de explicar no livro Política e Antipolítica: A crise do
Governo Bolsonaro (Todavia), dois eventos são centrais na
transformação de Jair Bolsonaro em liderança política nacional e os dois
ocorreram no início de 2016. No momento da condução coercitiva do ex-presidente
Lula, Bolsonaro estava em frente à sede da polícia Federal e ali externou uma
posição que se tornou famosa: “O PT deve ser afastado do convívio democrático e
da liberdade”.
Mas foi no dia 17
de abril, dia da votação da autorização para o impeachment da ex-presidente
Dilma, que Bolsonaro tornou-se líder inconteste da direita brasileira. O então
deputado federal declarou o seu voto da seguinte forma: “Pela memória do
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo
Exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus
acima de tudo, o meu voto é sim”. Com esse voto, Bolsonaro se habilitou como
líder da direita brasileira que vinha se reorganizando desde 2015. O
Bolsonarismo como movimento deslanchou a partir desse momento, mas ainda não
havia se habilitado para se tornar uma proposta de governo.
O Bolsonarismo se
transforma em proposta de governo a partir da interdição do ex-presidente Lula
e do fracasso retumbante do candidato do PSDB Geraldo Alckmin nas eleições.
Ali, membros da operação Lava Jato e forças do mercado conseguem o apoio
incondicional da grande imprensa à operação de normalização política do
Bolsonarismo e à aceitação do capitão reformado no mainstream da
política. Jair M. Bolsonaro faz um movimento em direção à governabilidade por
meio de uma operação de eficácia duvidosa que envolveu a aceitação de um
conjunto de propostas de reforma econômica conduzida por um indivíduo que seria
a mistura perfeita de autoritarismo e liberdade econômica, Paulo Guedes. A
operação ainda envolveria alguns acenos a grupos conservadores dentro do
sistema político, entre os quais, cabe destacar os Democratas que são
contemplados com três ministérios, o da Casa Civil com Onix Lorenzonni, o da
agricultura com Thereza Cristina Dias e o da Saúde com Luiz Eduardo Mandeta.
Dois pontos de
tensão surgem de imediato com a proposta de semi-governabilidade acatada pelo
capitão insurgente. O primeiro deles, é que o capitão precisa agradar à sua
base movimentalista e, para isso, foi preciso tensionar membros do sistema
político, expondo suas mazelas ligadas à corrupção e ao privilégio político.
Bolsonaro escolheu Onix Lorenzonni para essa função, ora humilhando-o em
público, ora atribuindo-lhe responsabilidades que não eram dele, como no caso
do voo privado de avião do amigo dos filhos do capitão. O mesmo ocorreu com o
ministro do turismo Álvaro Antônio e depois com Osmar Terra. Ou seja, Bolsonaro
precisou mostrar, nos seus dois primeiros anos de governo, que ele compôs com
um sistema político que ele controla e, se desejar, humilha. Assim, temos o
primeiro elemento de tensão que não é bem com a governabilidade e sim com os
políticos.
O segundo ponto de
tensão é mais complicado e levou ao conflito com Sergio Moro e Luis Henrique
Mandetta. Nesse caso, a questão central é que o bolsonarismo, como movimento, e
os interesses do clã estão acima das políticas públicas. A falta de caráter e
de clareza política de Sergio Moro torna difícil apontá-lo com alguém
interessado em implantar políticas de segurança pública. Em diversos momentos
na sua trajetória, ele realizou acordos por debaixo do pano em relação à
operação Lava Jato e, ao que tudo indica, sempre teve um projeto político
baseado no punitivismo, e não na segurança pública.
Ainda assim, em
alguns momentos, Sérgio Moro teve arroubos de gestor e fez propostas na área de
segurança pública que imediatamente encontraram oposição por parte do capitão
porque se chocaram com os interesses da sua base movimentalista. A
interferência, por motivos políticos, na Polícia Federal tornou insustentável a
permanência do ministro porque significaria se engajar com o bolsonarismo, com
o movimento que coloca os interesses do clã acima da governabilidade.
O bolsonarismo,
como movimento, precisa contar com a complacência dos órgãos de segurança
pública porque ele tensiona as instituições políticas no seu limite e, ao
fazê-lo, frequentemente ultrapassa os limites da lei e se choca com o
bolsonarismo como governo. Esse é um conflito ainda não resolvido pelo capitão
ou pelo populismo de direita, tal como vemos no trumpismo na última semana.
Ambas as propostas sinalizam para as suas bases a ultrapassagem de limites
legais.
No entanto, o maior
conflito dos dois anos de governo Bolsonaro – que também se insere no campo
bolsonarismo como movimento versus bolsonarismo como governo – se deu na
resposta à pandemia. A saúde foi uma área de composição entre o bolsonarismo e
a governabilidade desde a posse do capitão até março de 2020. A nomeação de
Luis Henrique Mandetta sinalizou uma composição entre esses objetivos: de um lado,
Mandetta havia se destacado na luta contra o programa “Mais Médicos” na Câmara,
se habilitando, portanto, entre as bases bolsonaristas.
De outro lado, ele
representava uma agenda privada já que havia sido superintendente da Unimed e
tinha até mesmo experiência no SUS durante sua gestão na secretaria de saúde de
Campo Grande. O problema é que o bolsonarismo se incomodou com uma resposta
baseada na governabilidade no início da pandemia e radicalizou sua posição de
semi-governabilidade para antigovernabilidade, tal como a reunião ministerial
do dia 22 de abril mostrou.
Se o presidente
forçou uma radicalização da concepção movimentalista contra o isolamento e
conseguiu estabilizar o seu governo a partir dela, ele corre perigos
gravíssimos se tentar fazer o mesmo em relação a vacinação contra a Covid em
2021. Há uma diferença que pode eventualmente apontar para o fim do
bolsonarismo. Explico. O isolamento social foi polêmico e produziu resultado
diversos em diferentes países, de modo que ele não produz uma concepção de
incompetência política absoluta.
A vacinação parece
ter níveis muito superiores de consenso ao seu redor e tudo indica que apenas o
governo Bolsonaro, entre os governos populistas de direita do mundo, se engajou
em uma campanha anti-vacina contra a Covid. Por outro lado, as bases
bolsonaristas são mais vocais contra a vacina do que contra o isolamento e isso
deve mobilizar o capitão, uma vez que a vacinação é um ponto de honra para
concepções antimodernas e para o fundamentalismo religioso desde o surgimento
da Christian Science nos Estados Unidos no século 19 sendo uma das agendas
centrais do movimento antipolítica e anticiência nas últimas décadas.
É nesse contexto
que não constitui absolutamente nenhuma surpresa a oposição do capitão
insurgente à vacina. No entanto, o que deve ser acrescentado à sua concepção
antivacina e irá marcar 2021 é que ele está disposto a aprofundar a
anti-governabilidade para conseguir que a vacinação não seja exitosa no Brasil.
As primeiras escaramuças em relação a essa questão aconteceram na discussão
sobre a aprovação emergencial de vacinas, mas vemos outras atitudes que podem
ter repercussões ainda mais dramáticas como a ausência de uma política de
compra de seringas e o pedido de assinatura de um termo de responsabilidade.
Todas essas
questões parecem colocar o Brasil muitos meses atrás de outros países em
relação à vacinação e provavelmente terão consequências econômicas e políticas
dramáticas. Se de fato o retorno a uma normalidade no Brasil ocorrer meses
depois dos demais países e o Brasil se tornar um pária internacional, estarão
dadas as condições para o rompimento do pacto de semi-governabilidade
ratificado entre o capitão e as forças do mercado. 2021 pode ser o ano do fim
do pacto mais macabro celebrado pelas elites brasileiras nos últimos cem anos,
o que não significará o fim do bolsonarismo como movimento.
Este veio para
ficar e talvez a campanha antivacina signifique, para ele, tanto quanto o
ataque ao Congresso significou para o trumpismo. Ambas as formas de populismo
de direta retiram sua energia do movimento anti-institucional que elas
produzem. Tudo indica que o bolsonarismo retira a sua energia da luta
anticiência e antivacina e o presidente irá se engajar de cabeça nessa luta que
pode separá-lo do mercado e até mesmo dos militares.
É nesse quadrado
que não apenas o futuro do bolsonarismo, mas provavelmente o das instituições
democráticas no Brasil será decidido. Ainda que o bolsonarismo seja derrotado
politicamente – e essa chance existe –, ele continuará a existir como movimento
e a tensionar a democracia brasileira nessa década que se inicia.
Publicado
originalmente no A Terra É Redonda
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