“A nossa primeira
disruptura intelectual inicia-se com a percepção de a China ter-se tornado o
berço de uma nova formação econômico-social”
por Elias Jabbour
Publicado 31/01/2021 16:00 | Editado 31/01/2021 19:01
Há cerca de três
anos temos observado uma série de transformações qualitativas no seio da
economia chinesa. Em um primeiro momento percebemos que o fortalecimento dos
Grandes Conglomerados Empresariais Estatais (GCEE) – assim como a conformação
de um capilarizado sistema financeiro estatal e de instituições capazes de
coordenar a ação do Estado na economia de forma efetiva não era um fim em si
mesmo.
O fenômeno guardava
mais historicidade. Já existiam elementos suficientes para demonstrar que o
“socialismo de mercado” já poderia ser observado como algo muito distante de um
propalado “capitalismo de Estado”. Na China estava emergindo uma nova formação
econômico-social que denominaríamos de “socialismo de mercado”.
Essa nova formação
econômico-social é fruto de uma série de mudanças institucionais que foram
demarcando ao longo das últimas quatro décadas tanto a conformação de um modo
de produção socialista dominante àquela formação tendo como núcleo os 96 GCEE,
dezenas de bancos estatais de desenvolvimento, além do próprio poder político
exercido pelo Partido Comunista da China (PCCh).
Mas a contradição
entre a análise e a realidade se impõe. Vejamos. Pesquisas recentes fizeram
apontamentos interessantes e acertados sobre a participação e controle estatal
sobre a riqueza e os fluxos de renda na China. Piketty et al (2017) e Naughton
(2017) têm conclusões semelhantes demonstrando que o Estado chinês controla
atualmente cerca de 30% da riqueza produzida no país, enquanto que em 1978 esse
controle alcançava 70%. Porém, atualmente o Estado chinês conta com uma
capacidade muito maior de intervenção sobre a realidade do que o tinha no final
da década de 1970.
Concluímos desde
então que a distância entre o dado e a realidade sob forma de elevação da
capacidade do Estado em intervir na realidade impõe uma necessária revisão
conceitual e teórica. Fazia-se necessária uma verdadeira disruptura
intelectual. A nossa primeira disruptura intelectual inicia-se com a percepção
de a China ter-se tornado o berço de uma nova formação econômico-social.
Surgem novas
regularidades diretamente relacionadas com pelo menos dois fatores: 1) o
surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica, causa e consequência
do progresso técnico percebido nas GCEE e incorporação à economia real de todas
as possibilidades abertas, à elevação da capacidade de planificação, pela
plataforma 5G, a Inteligência Artificial e o Big Data e 2) A China
completou a construção de um poderoso setor produtivo na economia, amplamente
baseado na geração de valor e criando condições de gerar o que Marx chamou de
setor improdutivo da economia.
O aparecimento de
um imenso setor produtivo na economia chinesa ladeado por uma série de instrumentos
políticos, financeiros e institucionais têm possibilitado mais um salto
qualitativo da economia chinesa. Por um lado, a predominância estatal sobre os
gânglios vitais da grande produção e da grande finança ao lado de uma soberania
monetária particular permite ao Estado gerir um processo que entrelaça tanto
uma maior restrição à ação da lei do valor quanto da transição de uma
planificação orientada à geração de valor e ao mercado para o que chamamos de
planejamento baseado no projeto.
Acumulamos evidências
suficientes ao lançamento da segunda disruptura intelectual que se faz
necessária diante da mudança de face do sistema econômico chinês em direção a
algo complemente superior em matéria de organização da produção. Concluímos que
as teorias convencionais ortodoxas e heterodoxas não eram mais suficientes para
explicar a natureza do fenômeno em marcha na China.
A leitura e a
retomada de algumas das categorias fundamentais de análise lançadas pelo
economista brasileiro Ignacio Rangel em seu esquecido livro “Elementos de
Economia do Projetamento” (1959) lançaram as luzes fundamentais à elaboração de
um novo corpo conceitual e categorial capaz de dar conta da nova realidade
econômica chinesa. Surge assim o que temos chamado desde então de “Nova
Economia do Projetamento”, que pode ser resumido – em princípio – como um
estágio superior de desenvolvimento alcançado pela China resultado do acúmulo
de todo um novo acervo em matéria de planificação econômica e organização e
racionalização da produção em grande escala na China.
Sob o prisma de uma
base material que avançou de forma rápida nas últimas décadas, de uma sociedade
que demanda agilidade de ação estatal, construção de grandes bens públicos e
enfrentamento a uma série de desafios colocados pela própria conjuntura uma
leitura atenta de “Elementos de Economia do Projetamento” será suficiente para
perceber que:
(…) o projetamento
é uma prática que se desenvolve em paralelo com uma teoria que evolui no tempo
e se alimenta com os problemas e soluções enfrentadas por aproximações
sucessivas e sistematizando (…) experiências dos analistas que, naturalmente,
são de diferentes escolas teóricas e de diferentes profissões. Castro (2014, p.
206)
O caso específico
da China o projetamento se expressa não somente na elevada capacidade de ação
estatal diante de emergências como o da pandemia do Covid-19, mas
principalmente a partir da percepção de algumas especificidades voltadas ao
bem-estar geral da sociedade.
Uma economia e uma
sociedade capazes de restringir a ação da lei do valor e se voltar a consecução
de grandes projetos levou a China e se caracterizar por ser uma economia
voltada a construção de grandes bens públicos, o que nos remete a Marx e a
formação do setor improdutivo da economia, evidentemente.
O avançar chinês no
rumo de uma economia controlada pela razão humana condiz com a construção de
algumas categorias de análise e que tem servido de sustentação ao conceito
renovado de projetamento como forma histórica mais avançada do socialismo com
características chinesas. A construção destas categorias tem seguido rigor
histórico e complexa base de dados.
Do ponto de vista
da “Economia Política da Nova Economia do Projetamento” podemos apontar para
quatro categorias de análise: 1) a possibilidade aberta de superação da
incerteza keynesiana, fruto do domínio público sobre os elementos fundamentais
do processo de produção e financiamento da economia do país; 2) a plena
soberania monetária como fundamento material essencial à explicação de uma
economia que não somente tem tido êxito à restrição da ação da lei do valor,
mas que não sofre de nenhum grau de restrição financeira dada a utilização
consciente da criação de moeda para fins de execução de grandes projetos.
O papel de
vanguarda do PCCh condicionado por melhoras substanciais nos padrões de vida do
povo, elevação do poderio nacional e a instituição de megaprojetos voltados ao
bem-estar da sociedade em geral tem sua contraparte subjetiva sintetizada na
categoria que chamamos de pacto tácito de adesão. No caso da prontidão nacional
com o PCCh levando 450 mil voluntários para combater a morte em Wuhan e o
Estado que priorizou vidas em detrimento do lucro empresarial foi a cabal
demonstração de que novos marcos de sociabilidade operam sobre o concreto.
Encerramos por aqui
nossos breves comentários sobre aportes teóricos que podem abrir novos
horizontes em matéria de uma observação menos pessimista, menos europeia e mais
latino-americana sobre o novo que surge em meio ao velho que persiste em
sobreviver. A China e sua “Nova Economia do Projetamento” nos confere algum
grau de certeza de que estamos diante de um mundo que guarda, também, grandes
esperanças.
Elias Jabbour
é professor dos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) e
em Ciências Econômicas (PPGCE) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Originalmente publicado no Jornal dos Economistas.
Referências
CASTRO, M. H.
“Elementos de economia do projetamento”. In, HOLANDA, F, M.; ALMADA, J. e
PAULA, Z. A. Ignácio Rangel, decifrador do Brasil. São Luís: Edufma, 2014.
NAUGHTON, B.: Is China socialist? Journal of Economic Perspectives, v. 31, n.
1, p. 3-24, 2017.
PIKETTY, T; YANG, L.; ZUCMAN, G. Capital accumulation, private property and
rising inequality in China. NBER Working Paper, n. 23368, Apr. 2017.
RANGEL, I. “Elementos de Economia do Projetamento”. In, RANGEL, I.: Obras
Reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, [1959] 2005.
0 comentários :
Postar um comentário