O modelo chileno está virando do avesso. Agora somos nós, os precários do Brasil e da América Latina, que podemos aprender com o Chile
Publicado 09/10/2021 16:10
(Foto: Reprodução do Twitter)
“As pessoas se
cansaram da democracia representativa e demandam participação”, resume Luís
Mesina, porta-voz do movimento No+AFP, que luta contra as associações de fundos
de pensão, expressão da previdência privatizada no Chile. “É o paradigma
neoliberal chileno que pode ser despedaçado pela cidadania”, aposta. O coletivo
Vitrina Dystópica complementa: “Há um componente transversal nas lutas e no
mal-estar (…). O elemento disparador dessa transversalidade é o
movimento feito pelos estudantes secundaristas” para denunciar a “armação
frágil do endividamento”.
Feministas,
estudantes, aposentados, trabalhadores, desempregados, indígenas, indignados,
empobrecidos, endividados… Entre outubro de 2019 e março de 2020, as ruas
chilenas foram ocupadas por um gigantesco “baile de los que sobran”
[dança dos excluídos], como dizia a canção de Los Prisioneros em 1986. Na
perigosa “primeira linha”, jovens com pedras e escudos coloridos, audazes,
treinados durante uma década e meia de enfrentamentos com os carabineros, a
polícia chilena. Pela primeira vez, os “radicais” do corpo a corpo foram
aplaudidos como heróis anônimos de uma rebelião de massas contra o sistema
neoliberal.
A revolta chilena
“politizou o mal-estar”. Sua consequência mais visível foi a possibilidade
histórica de enterrar o neoliberalismo de Augusto Pinochet, Sérgio de Castro
(1) e Jaime Guzmán, (2) abolindo a atual Constituição do país criada em 1980
pela ditadura e jogando no lixo o conceito de “subsidiariedade do Estado”,
refundando o país em bases profundamente populares e verdadeiramente
democráticas.
Neste livro, todas
as vozes vêm das ruas, trazendo consigo a potência política dos combates
verdadeiros. Das periferias, dos territórios espoliados, das vidas precárias,
dos sem-teto e sem-aposentadoria. São as vozes dos transgressores, daqueles que
conscientemente querem escapar ao controle neoliberal e, para isso,
confeccionam uma nova historicidade solidária que alimenta a luta coletiva. São
os criadores de uma “poética da rebelião”, artífices da disputa pelo poder que
se expressa com simbolismo nas palavras dos muros, nas performances feministas,
nos murais, na derrubada dos monumentos, em cada palmo dos territórios
convertidos ao utilitarismo do capital.
Esta obra oferece
ao leitor brasileiro 16 capítulos de autoria individual e dois de autoria
coletiva, que apontam as múltiplas dimensões de uma grande transformação. Uma
polifonia orientada a um mesmo horizonte histórico da recomposição do comum.
Por isso, Chile em Chamas é um retrato representativo da
diversidade e da inteligência plural do novo sujeito popular que se formou no
país.
Há pelo menos 30
anos, o “modelo chileno” é tratado pelas elites neoliberais latino-americanas
como um primoroso exemplo de desenvolvimento e liberdade de capitais. O “tigre”
do continente, um paraíso estável dentro de uma região caótica, o vizinho que
deu certo. Pelo menos desde 2006, quando eclodiu a revolta dos estudantes
secundaristas contra a educação neoliberal e o endividamento — a chamada
Revolta dos Pinguins, em referência ao terninho usado como uniforme escolar —,
os chilenos acenderam um estridente sinal de alerta sobre a farsa da
normalização do “pinochetismo sem Pinochet”. Em 2019, essa farsa perdeu
qualquer base lógica de sustentação.
O “modelo” é
baseado na dessocialização radical do trabalho, na desagregação de qualquer
associativismo solidário, na sociabilidade individualista, na capitalização da
previdência e, sobretudo, no endividamento generalizado como dispositivo de
controle social. No Chile, os direitos sociais são inconstitucionais, pois os
mecanismos de gratuidade e as garantias de direitos pelo Estado ferem as
“liberdades do mercado”. O Estado subsidiário atravanca o uso do fundo público
para o bem-estar comum. A classe trabalhadora foi convertida ao status de
consumidora empobrecida e desamparada.
Não são só 30 anos,
são 47 (ou talvez mais de 500, como ensinam os povos indígenas). No
recrudescimento do mal-estar chileno, reinava o “masoquismo do mérito”, a
espoliação dos territórios, a delinquência normalizada dos ricos. Faz parte do
pacote o cinismo das promessas individualistas, o triunfo do egoísmo, o
desalento popular.
Nunca se deve
esquecer que, para criar o “modelo chileno”, a ditadura de Pinochet matou pelo
menos 3.216 pessoas, torturou 38.254, roubou mais de 7 milhões de hectares de
camponeses e indígenas, demitiu 230 mil trabalhadores e exilou 200 mil
compatriotas. Isso é o que dizem os relatórios das Comissões da Verdade de
1991, 2001, 2004 e 2011.
Entre outubro de
2019 e janeiro de 2020, para proteger o “modelo”, o governo do presidente
Sebastián Piñera prendeu 22 mil pessoas, feriu 4 mil (sendo 282 crianças),
torturou mil cidadãos (ou mais, pois este número diz respeito aos que tiveram
coragem de denunciar), produziu traumas oculares em 460 chilenos, violentou
sexualmente 183 vítimas e assassinou 27 vidas. Tudo isso em quatro meses,
dentro de uma “democracia protegida”, blindada contra experimentos populares de
tipo allendista. (3)
Muito mais do que
narrar perspectivas políticas e compartilhar imaginações radicais, as vozes das
ruas que falam neste livro mostram que o Chile pode ser a fronteira de uma
revolução epistemológica dos paradigmas anticapitalistas na América Latina.
Ali, protagonizam as esquerdas que trocam o centralismo e o estatismo do século
20 pela diversidade, pelas economias do cuidado e pela recriação do comunitário;
que dispensam as formas hierárquicas pelas horizontais; que apostam na
pluralidade de vozes anônimas e desconfiam dos poderes excessivamente
individuais; que disputam o Estado como poder popular destituinte, jamais para
fazer pactos com as nuances brandas do sistema.
Mas não basta
destituir. A revolta chilena também foi constituinte. Não falo apenas da nova
Constituição, que será gestada pela maioria antineoliberal da Convenção
Constituinte – cuja presidência será ocupada por Elisa Loncón, uma mulher mapuche.
Falo também da “constituição” de novos sentidos de solidariedade cotidiana nos
bairros periféricos impactados pela crise do coronavírus, pela fome e pelo
desemprego; da “constituição” de novos laços sociais e históricos entre os
derrotados de muitas gerações; da “constituição” de perspectivas, práticas,
valores e afetos da humanidade que se quer ser, construída coletivamente a
partir de agora. Há um giro epistemológico das esquerdas no Chile, impulsionado
por feminismos alternativos (ecológicos, indígenas, plurais, cuidadores e
combativos). Os feminismos e as perspectivas indígenas cumprem um papel
pedagógico na reinvenção das infraestruturas do bem-estar comunitário.
O poder destituinte
das ruas aponta uma dialética das lutas revolucionárias, nas quais destruir o
poder vigente do neoliberalismo em seu berço demanda simultaneamente forjar os
novos sentidos solidários para a vida popular e recriar a estratégia
anticapitalista no calor da luta: destituir e constituir, como parte dos mesmos
gestos políticos.
O modelo chileno
está virando do avesso. Agora somos nós, os precários do Brasil e da América
Latina, que podemos aprender com o Chile. Chile em Chamas: A Revolta
Antineoliberal é um pequeno passo para essa longa aprendizagem.
NOTAS
(1) Ministro
da Fazenda do Chile entre 1976 e 1982. [n.e.]
(2) Senador,
fundador do partido conservador Unión Demócrata Independiente, colaborador
jurídico de Augusto Pinochet e um dos principais artífices da Constituição de
1980. [n.e.]
(3) Referência a
Salvador Allende, presidente do Chile entre 1970 e 1973, quando se suicidou
dentro do Palácio La Moneda ao ser vítima do golpe de Estado liderado por
Augusto Pinochet. [n.e.]
Publicado
originalmente no Outras Palavras. Este texto é a introdução
de Chile em Chamas: A Revolta Antineoliberal, de Tinta Limón,
recém-publicado pela Editora Elefante, parceira editorial de Outras Palavras
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