Pelé, o rei.
Negro, descendente
de escravos, se tornou o símbolo máximo de um esporte criado pela elite branca
e inglesa para difundir as ideias da Revolução Industrial e do Capitalismo.
Publicado 08/01/2023 09:00 | Editado 06/01/2023 10:36
Em 2 de junho de 1965, a Seleção Brasileira goleou a Bélgica por 5 a 0
no Maracanã. Equipado com sua câmera Leica M3, o fotógrafo Alberto Ferreira
registrou Pelé na sua tentativa de marcar um gol de bicicleta. O gol não veio
nesse lance, mas a imagem tornou-se icônica.
Nasceu rei em um
casebre de madeira, tal como o menino Jesus, em uma cidade que tinha 3 corações
no nome. Tão pobre quanto o salvador, engraxava sapatos com o semblante de um
menino e a esperança e a responsabilidade de um homem. Não podia imaginar
que também marcaria o seu tempo, o seu saber e o seu ofício com o antes e
depois de si mesmo.
A dor de seu pai,
ao ouvir o Brasil chorar, o fez prometer trazer uma Copa para ele. Não ganhou
apenas um título, ganhou três, uma para cada coração do nome de sua
origem. Sua predestinação não era apenas a de resgatar a dilaceração do
peito do homem que lhe deu a vida, mas de uma gente constantemente humilhada e
ofendida e de um país que tentava se afirmar como existente perante o mundo.
Mal sabia que em seu corpo em movimento carregaria toda a resistência de
séculos de escravidão e que ele, por si só, devolveria a autoestima de um povo.
Negro, descendente
de escravos, se tornou o símbolo máximo de um esporte criado pela elite branca
e inglesa para difundir as ideias da Revolução Industrial e do Capitalismo.
Quebrou as regras do jogo apolíneo, estático, rígido no tempo e no espaço,
ultra organizado, regrado, dividido, higienizado, tal como a divisão social do
trabalho que precisava ser exposta por meio de um jogo brando e
institucionalizado na força física e no corpo branco.
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Ele aperfeiçoou,
para além dos limites humanos, o jogo dionísiaco criado por corpos mutilados,
oprimidos, ridicularizados de uma nação alçada à terceira categoria e fez desse
jogo: o melhor, o vencedor, o desejado, o invejado e o extremo da poesia em um
palco todo gramado. A bola que insistia em grudar no seu peito, amaciada como
se fosse um carinho instante, o seu cabeceio em um salto tão maior que o dos
outros, com os olhos abertos para direcionar o vento, o diferentes chapéus sem
deixar a bola cair e que só pisa no chão no fundo das redes, os dribles
curtos e rápidos, o toque de calcanhar que desliza suavemente, o
convite para a tabela com as pernas do adversário, a trivela, o toque de três
dedos, enfim, as raízes brilhantes que seus pés insistiam em plantar nos
olhares e nas bocas abertas dos abismados, para que eles nunca mais o
esquecessem!
Que se dignasse, os
surpreendidos e todos os confusos de espírito, o seu nome para as galerias da
imortalização da beleza. Os gênios transformam seu simples ofício em arte nunca
alcançável para os meros mortais. E todas guerras naquele tempo pararam, os
humilhados foram exaltados, os colonizados finalmente libertados, os árbitros
expulsos para que o jogo seguisse infinitamente em sua presença.
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quem sabe, inveja é para quem tem
Embora fosse rei,
sempre se comportou como um simples homem fora de campo. Humilde, não reclamava
da comida, da roupa, do alojamento, e mesmo sendo rei, não queria ser tratado
diferente dos outros. Era apenas um homem, mas quando saia do vestiário para um
campo de futebol, se vestia de manto, cetro e coroa. Naquele momento, todos os
jogadores da sua equipe e do rival eram seus súditos. Ele os subjugava apenas
com seus olhos de onça negra que transmitia a excelência que calçava os seus
pés.
Mil músicas o
cantaram, mil poemas o aclamaram em deleite lírico e épico para que o futuro não
deixasse nunca de o reverenciar, assim como se deve fazer aos heróis das
odisseias.
Nas arquibancadas,
a torcida virava a plateia pronta para venerá-lo e se enchiam de orgulho
histórico ao testemunharem ao vivo e a cores, um simples homem tocar a bola como
nenhum outro assim o fez. Ele devolvia o sentido de público para todas as
gerais. Levava para o povo a arte do teatro, do drama, da ópera, da sinfonia,
da orquestra, os grandes museus, as grandes pinturas e esculturas, os mais
líricos poemas em sua glória, tudo sintetizado em seu corpo em movimento.
Cada gol que Pelé
marcava, era visto como uma homenagem ao adversário e os seus torcedores se
lisonjeavam pelo feito. Pelé era o único jogador que conseguia vencer as
paixões dos aficionados, fazia os deixar seus clubes de lado, porque a cada
tento contra, naturalmente a reação era se levantar, admirar e aplaudir o rei
seja por 1 minuto, dois, três, quatro, cinco ou 10 minutos, todos de pé,
felizes por serem espectadores do gênio e do artista. Mas ali não haveria
derrotados, nem vencedores, apenas os escolhidos a se prostarem em sua face.
Quando se movia, o
Sol parecia girar em torno da Terra, do mesmo jeito que ele fazia o planeta
girar em torno da bola, enquanto a bola era toda dele, sua companheira, sua amiga,
sua amante. Nasceram um para o outro, e só ele a entendia como nunca, tanto que
quando parou de jogar, a bola continuou sonhando em reencontrá-lo copiosamente
e em cada outro pé que a tocava, ela o procurava sem respostas. Talvez em
outros gênios posteriores encontrem um pouco de sua luz, mas nunca com um
esplendor máximo de um ser que ousou ser divino em toda sua mortalidade.
Enquanto isso, o
jogo dionísiaco, o jogo bonito segue bailando pelos ares na imaginação do mundo
todo, como um sopro de uma dança circular que abraça o vento, se veste de asas
da alegria para mais que um tempo e canta a escrita dos pés nas linhas de um
campo.
As opiniões expostas neste artigo não
refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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