Apagar o professor
é apagar o futuro. É apagar o passado também, privando um povo de memória e de
referências. É igualmente apagar o presente, impedindo a construção do debate e
do pensamento crítico
por Gilson Reis
Publicado 20/05/2023 11:08 | Editado 21/05/2023 12:04
Foto: Agência Brasil
Uma professora está
diante de uma lousa verde, onde se lê, escrito em giz amarelo: desprofissionalização
do professor; reforma do ensino médio; reformas trabalhista e da previdência;
PEC do Fim do Mundo; terceirização; lei da mordaça. Ela tenta apagar as
palavras, mas em vão. Aos poucos, ao invés de as palavras sumirem, é a
professora que vai desaparecendo, até sumir.
A descrição acima é
de um vídeo produzido em 2017 para a Campanha Nacional contra a
Desprofissionalização do Professor lançada nesse ano pela Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee, com o slogan “Apagar
o professor é apagar o futuro”. Em off, a voz do narrador cita, textualmente, a
série de medidas tomadas pelo então governo de Michel Temer (MDB) que ameaçavam
e/ou atacam diretamente o magistério e a profissão docente.
A campanha “Apagar
o professor é apagar o futuro” foi uma das bem-sucedidas desenvolvidas pela
Contee, em razão da força do slogan e do impacto da denúncia. Passados seis
anos, embora o vídeo como peça de propaganda, pela referência a Temer, esteja
datado, o alerta sobre o processo de apagamento de professoras e professores,
bem como da própria educação, não está. Pelo contrário, permanece não apenas
atual, como exponencialmente cruel. Por vezes trágico. Na gíria do crime, a
professora Elisabeth Tenreiro, de 71 anos, morta esfaqueada por um estudante na
Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, foi apagada. Definitivamente.
O tenebroso governo
Temer acabou, o de Jair Bolsonaro (PL) — ainda mais nefasto — também foi
derrotado nas urnas, mas seus efeitos ainda são sentidas, direta e
indiretamente (já foi mais do que discutido o quanto o que aconteceu na escola
Thomasia Montoro e em outras escolas pelo País é fruto do crescimento do
fascismo e do tensionamento ideológico levado às últimas consequências).
As reformas
trabalhista e da previdência, assim como a terceirização sem limites, fizeram
terra arrasada dos direitos de quem trabalha e impactaram sobremaneira os
profissionais que atuam em instituições de ensino. A PEC do Fim do Mundo,
transformada na Emenda à Constituição 95, deixou a educação pública
completamente desamparada e desguarnecida de investimentos, ao passo que os
interesses privatistas foram constantemente contemplados.
Sobre a reforma do
ensino médio, conseguimos, à custa de intensa mobilização, que o atual governo,
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), suspendesse os prazos de
implementação do NEM, mas a luta pela revogação continua. Já as mordaças seguem
sendo apertadas nas bocas de docentes à revelia de o STF (Supremo Tribunal
Federal) ter decidido, em ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade), que leis
municipais e estaduais são inconstitucionais e antagônicas à proteção do
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da tolerância,
tal como previstas também na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação).
Adeptos da mordaça,
contudo, têm agido contra o entendimento da Suprema Corte, da LDB e da própria
Constituição e executado apagamentos ao seu capricho e à sua crueldade. Não
literalmente, como no episódio de São Paulo, mas um apagamento paradoxal, às
avessas, expondo professores de forma difamatória nas redes sociais.
É o que faz
constantemente, por exemplo, o deputado goiano Gustavo Gayer (PL), contra o
qual a Contee, o Sinpro-GO (Sindicato dos Professores de Goiás), a Fitrae-BC
(Federação Interestadual dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino do
Brasil Central) e o Sintego (Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás)
já acionaram a Justiça. O (mal)feito mais recente do parlamentar-youtuber foi
ter provocado a demissão de uma professora do Colégio Expressão, localizado em
Aparecida de Goiânia, na Região Metropolitana da capital de Goiás, ao postar
uma foto dela usando uma camiseta vermelha com a frase “Seja marginal, seja
herói”, do renomado artista plástico Hélio Oiticica, acusando-a de doutrinação
ideológica.
Pode parecer um
contrassenso, mas por que uma postagem — quando postar, nas redes, é exatamente
o contrário de apagar — é uma forma de apagamento? Porque é uma desumanização.
A publicação de Gayer pode até exibir a imagem da professora, mas, ao fazê-lo,
além de conseguir apagar seu contrato de trabalho, comete o crime de apagar sua
honra e sua reputação. Apaga-a como pessoa com direito a pensamentos, ideias,
gostos, afetos. Sem falar na história da arte e da cultura brasileiras,
apagadas pelo orgulho dos amordaçadores pela própria estupidez e seu apreço
pela ignorância.
Apagar o professor
é apagar o futuro, já dizia a Contee seis anos atrás. É apagar o passado
também, privando um povo de memória e de referências. É igualmente apagar o
presente, impedindo a construção do debate e do pensamento crítico. É apagar o
País.
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