Quase 900 greves estavam em curso no início de agosto. Só em 2023, houve 44 paralisações que mobilizaram milhares de trabalhadores
por André Cintra
Publicado 18/08/2023 11:22 | Editado 18/08/2023 11:27
Greve em 19 hotéis liderada pelo Unite Here Local 11, em julho, teve a
adesão de milhares de trabalhadores
No início da década
de 1970, o escritor e ativista norte-americano Studs Terkel (1912-2008) decidiu
ouvir a classe trabalhadora. Não lhe faltavam credenciais. Entrevistador
excepcional, com experiência em programas de rádio e TV, Terkel conseguiu
extrair depoimentos únicos de mais de cem trabalhadores de diversos setores. A
experiência foi a base para o ensaio Trabalho (Working),
de 1974. No subtítulo, o livro já anunciava sua proposta originalíssima:
“Pessoas falam sobre o que fazem o dia todo e como se sentem sobre o que
fazem”.
Um ponto comum em
diversos relatos – sobretudo o de trabalhadores mais veteranos – era a percepção
de que, àquela altura da vida, o movimento sindical não parecia ser tão
influente quanto em décadas anteriores. O auge do sindicalismo americano,
alcançado na virada dos anos ‘40 para ’50 do século passado, quando 33% dos
trabalhadores do país eram sindicalizados, havia ficado para trás. O livro de
Terkel retratava, assim, um ciclo de declínio sindical, cujo ponto de partida
foi a Lei Taft-Hartley, a célebre legislação antigrevista e anticomunista de
1947, que estimulava a perseguição a sindicalistas.
Quarenta e nove
anos depois, Trabalho (Working) é o nome com que o
ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama batiza seu mais novo projeto para
a Netflix. A minissérie documental, já no primeiro de quatro episódios, rende
homenagem a Terkel e à sua obra seminal. Segundo Obama, “foi a primeira vez que
alguém se preocupou em perguntar às pessoas comuns como elas encaravam o
trabalho”.
Com foco no
segmento de prestação de serviços, o episódio 1 também desponta como uma peça
de propaganda do movimento sindical. Quem menciona inicialmente o tema é a
imigrante Elba, camareira há 22 anos no Hotel Pierre, em Nova York: “Aqui é
obrigatório aderir ao sindicato. Mas é bom – eles trabalham por nós”.
Seus colegas
concordam, ainda mais sob o risco de serem substituídos por robôs e máquinas. A
mecânica Rosaura, outra funcionária do Pierre, lembra, aflita, que já existem
hotéis “sem ninguém na recepção”. É o próprio hóspede que faz o check
in e, em seguida, põe as malas em um carrinho. Nesse modelo de hotel,
não há “nada que envolva humanos”, agrega Elba.
O ex-presidente Barack Obama, em cena
do documentário Trabalho
No curso desse
bate-papo, entra em cena Beverly, a delegada sindical. Rosaura lhe pergunta o
que aconteceria se as máquinas tomassem seus postos de trabalho. Beverly
responde de pronto: “É por isso que temos os sindicatos! Não é tão fácil se
livrar de nós. Olhem os outros hotéis, os que fecharam de vez. Eram
estabelecimentos que não tinham sindicato. Eles (os funcionários) foram
demitidos sem receber nada. Temos que nos manter unidos, e ninguém vai fechar
aqui”.
Muito além dos
hotéis e de Hollywood
Trabalhadores de
hotéis puderam testar a força do movimento sindical às vésperas do 4 de Julho,
o feriado da Independência dos Estados Unidos. Numa mobilização sem precedentes,
uma greve unificada parou boa parte dos serviços de 19 hotéis de Los Angeles e
Orange (condado da Califórinia). Redes como Hyatt, Hilton e Accor não queriam
sequer negociar o aumento salarial reivindicado – de US$ 5 por hora.
Sob a liderança do sindicato
Unite Here Local 11, o levante teve a adesão de milhares de cozinheiros,
camareiros, lavadores de pratos, garçons, mensageiros e recepcionistas. Em
assembleia, 96% da categoria apoiou a proposta de greve – a base da entidade
soma mais de 32 mil trabalhadores. De acordo com o Unite Here Local 11, esses
“trabalhadores penam para pagar por moradia nas cidades onde trabalham e já
sofreram com cortes de empregos durante a pandemia de Covid-19”.
A greve era não
apenas por melhores salários e benefícios – mas também por um fundo para
moradia. “Esta paralisação foi a primeira de muitas ações que podem ocorrer
neste verão por trabalhadores de hotéis no sul da Califórnia – e é apenas uma
ferramenta em nossa caixa de ferramentas”, disse, no auge da greve, Kurt
Petersen, um dos presidentes da Unite Here Local 11.
A percepção de que
os sindicatos renasceram nos Estados Unidos não se restringe à rede hoteleira.
O fenômeno é geral. Em 10 de agosto passado, a BBC News destacou
que o sindicalismo estadunidense “vem ganhando força e produziu em 2023 o verão
com maior número de trabalhadores dispostos a cruzar os braços nos últimos 50
anos”. A greve em Hollywood – que mobilizou 175 mil profissionais do cinema – é
tão-somente “a faceta mais evidente (e glamourosa)” de uma onda sindical que
não para de crescer.
Em Hollywood, o
fantasma está mais à frente. Roteiristas, atores e outros profissionais do
cinema olham para o futuro e tentam se proteger da invasão tsunâmica da
inteligência artificial, que já é capaz de criar tramas complexas e projetar
personagens hiper-realistas.
É o típico caso em
que o sindicalismo é chamado a mediar uma discussão inadiável: como preservar
empregos (e até profissões) em meio à 4ª Revolução Industrial – a mais
acelerada e profunda das grandes transformações tecnológicas? Por regra, o
avanço tecnológico cria e extingue ocupações. Como proteger os trabalhadores
que estão mais vulneráveis?
Greve em Hollywood é “a faceta mais
evidente (e glamourosa)” de uma onda sindical que não para de crescer
Os sindicatos
norte-americanos têm algo a nos ensinar com essa estratégia. É sintomático que,
além dos Estados Unidos, países como Alemanha, Japão e China já disputem a
vanguarda da indústria 4.0 com uma série de incentivos e programas
governamentais – mas ainda sem respostas completas para o futuro do trabalho.
Por que o movimento sindical não toma para si a missão e conduz o debate, muito
além do setor hoteleiro e da indústria do audiovisual?
Da organização às
greves
Particularmente nos
Estados Unidos, centenas de manifestações se entrelaçam a essa causa mais
geral, somadas às lutas contra a precarização das condições de trabalho. É o
que ocorre na gigante dos correios UPS (United Parcel Service), líder mundial
em entregas. Estava prevista para agosto uma greve em suas unidades, apoiada
por 97% da categoria e liderada pelo Sindicato Teamsters, com capacidade de
reunir mais de 340 mil trabalhadores. Seria a maior paralisação na história de
uma única empresa norte-americana.
A bordo de seus
caminhões, os motoristas da UPS transportam em encomendas, a cada ano, o
equivalente a 6% do PIB (Produto Interno Bruto) estadunidense. Apesar do
serviço estratégico que prestam, esses trabalhadores temiam (com razão) o fim
do acordo coletivo, que venceu em 31 de julho. A pressão do sindicato levou a
conquistas, como a instalação de ar-condicionado em toda a frota de entregas. A
UPS, porém, mantinha a intransigência nas negociações das cláusulas econômicas.
O reajuste salarial era o impasse principal, já que a empresa não pretendia nem
repor a inflação do período.
Em qualquer canto
do mundo, quando se trata de serviços essenciais, é raro que a população apoie
uma paralisação. Mas o movimento dos trabalhadores da UPS ganhou a simpatia da
opinião pública. Muitos compararam a manifestação atual com a bem-sucedida
greve de 1997, quando, após 15 anos, os funcionários da empresa deixaram de
ganhar apenas US$ 8 por hora. Mais de 25 anos depois, a UPS novamente cedeu e
melhorou as remunerações, o que impediu o início da greve.
Em muitas outras
categorias, as negociações não evoluíram para acordos, nem mesmo após os picos
da crise sanitária, que serviram de pretexto para o patronato cortar direitos.
Ainda que a explosão de greves seja recente, o renascimento do sindicalismo
norte-americano tinha antecedentes elementares. Só em 2022, a Junta Nacional de Relações Laborais registrou uma alta de
53% no número de pedidos de abertura de sindicatos. O movimento tem
hoje o apoio de 71% dos trabalhadores norte-americanos, maior índice desde
1965, conforme a Gallup.
Pressão dos trabalhadores da UPS
levou a conquistas e à suspensão do estado de greve
Com mais
consciência e organização na base, a hora do conflito de classes chegou. “Em
todo o país, de acordo com o mapeamento da Escola de Relações Laborais e
Industriais da Universidade Cornell, estavam em curso, no início de agosto,
quase 900 greves”, indica a BBC. “Enquanto o país contabilizou 23 grandes mobilizações (com adesão de ao
menos alguns milhares de empregados) em 2021, houve até agora, em
2023, 44 paralisações com esse mesmo perfil.”
O desafio dessa
onda é ampliar a taxa de sindicalização, que ainda é muito baixa nos Estados
Unidos. O número geral de sindicalizados passou de 20 milhões em 1980 para 14,3
milhões nos dias atuais. No setor privado, apenas 6% dos trabalhadores são
associados a alguma entidade sindical – a metade da taxa de 30 anos
atrás. Funcionários de gigantes como a Apple, a Amazon e a Starbucks começam a
enfrentar o tabu. O momento não poderia ser mais propício.
“Nos anos 1980 e
1990, os sindicatos viam greves como atividades muito perigosas, que poderiam
resultar em sua dissolução. Era melhor fazer concessões, uma posição mais
passiva”, disse à BBC Nelson Lichtenstein, diretor do Centro de Estudos do
Trabalho, Emprego e Democracia da Universidade da Califórnia. “Agora, os
sindicatos entraram no modo ofensivo, o que não víamos há muito, muito tempo. O
nível de atividades grevistas que estamos vendo agora se equipara ao que
tínhamos nos anos 1970.”
Os democratas
Trabalho, o documentário,
tenta associar o Partido Democrata à história do sindicalismo, ao evocar as
primeiras medidas de combate à superexploração nas fábricas dos Estados Unidos.
“No auge da Grande Depressão, Franklin Roosevelt aprovou proteções para os
trabalhadores. O New Deal incluía a jornada de 40 horas semanais, um novo
salário mínimo, segurança social e o direito à sindicalização”, narra Obama. “O
trabalho nas fábricas continuava duro, mas os empregos melhoraram – tanto que
se tornaram a base da classe média mais robusta na história mundial.”
A pouco mais de um
ano das eleições à Casa Branca, o também democrata Joe Biden tenta reconectar a
seu partido às camadas da classe trabalhadora que foram (e ainda estão)
atraídas por Donald Trump e pela extrema-direita. Biden é, desde Roosevelt, o
presidente dos Estados Unidos que mais discursou em defesa do movimento
sindical. Um de seus mantras é que “Wall Street não construiu este país. A
classe trabalhadora é que construiu este país – e os sindicatos construíram a
classe trabalhadora”.
Expectativa do movimento sindical é
que o apoio de Biden aos trabalhadores vá além das palavras
Mas, em 2022, sua
proposta para solucionar a campanha salarial dos ferroviários foi considerada,
antes de tudo, autoritária. De um lado, estavam empresas como Union Pacific,
BNSF e Norfolk Southern. Do outro, sindicatos que representam 60 mil
trabalhadores. Biden passou a impressão de que sua prioridade número 1 não era
dialogar com a categoria, mas, sim, evitar a qualquer custo a paralisação das
ferrovias, que poderia causar prejuízos estimados em US$ 2 bilhões por dia.
A Casa Branca
detectou o ruído e tenta contrapô-lo, agora, com uma posição mais favorável aos
trabalhadores em outra contenda no setor de transporte: o UAW (United Auto
Workers) pressiona as principais montadoras instaladas em Detroit, as chamadas
Três Grandes – Ford, General Motors e Stellantis. O contrato coletivo firmado
entre as partes – e válido para 150 mil trabalhadores – expira em 14 de
setembro.
A causa da energia
limpa no setor, baseada em veículos elétricos, foi o ponto de equilíbrio para
Biden tentar a mediação. “Estou pedindo a todos os lados que trabalhem juntos
para forjar um acordo justo. Apoio uma transição justa para um futuro de
energia limpa”, declarou o presidente, na segunda-feira (14), em comunicado à
imprensa.
Desta vez, porém, o
aceno aos trabalhadores metalúrgicos das Três Grandes foi mais explícito do que
aos ferroviários. “O UAW ajudou a criar a classe média americana e, à medida
que avançamos nessa transição para novas tecnologias, o UAW merece um contrato
que sustente a classe média”, afirmou Biden.
Ao lado de
reajustes salariais dignos, os trabalhadores de Detroit pedem garantias em caso
de fechamento de plantas das montadoras e uma transição pactuada para a energia
limpa. O presidente da UAW, Shawn Fain, demonstra simpatia por Biden, mas uma
greve sob seu comando pode consolidar 2023 como o ano em que os
norte-americanos voltaram a apostar no movimento sindical. É esperado que, até
o desfecho da batalha de Detroit, a atuação de Biden possa ir um pouco além das
palavras.
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