Manuel Bandeira da vida terna e eterna
Neste 13 de outubro, faz 55 anos que o nosso maior poeta se foi. Manuel
Bandeira era grande poeta pelo justo motivo da sua sensibilidade elástica,
plástica
Urariano Mota*
Neste 13 de outubro, faz 55 anos que
o nosso maior poeta se foi.
Da sua poesia anotamos estas linhas.
Com Manuel Bandeira, temos uma viagem
íntima nos poemas que nos abalaram desde quando éramos adolescentes. E nos
dizíamos, surpresos, “então isto é poesia !”. E por isso mesmo, por força dessa
revelação, passamos a ser amantes de
“PORQUINHO-DA-ÍNDIA
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
– O meu porquinho-da-índia foi a
minha primeira namorada.”
A parte que vem da razão nos fala que
por trás desses versos existe um homem experiente na arte de criar um poema, um
ser feroz que nos fere no íntimo porque é poesia. Esse poema cresce pelo
pequeno, pelos diminutivos: porquinho, bichinho, limpinhos, ternurinhas, até
explodir no inusitado, no súbito golpe, no absurdo da relação entre uma cobaia
e o amor, “o meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada”.
Porquinho-da-índia é um poema escrito
antes de 1930, mas um verso diz, “Levava ele pra sala”. Isso até então nem era
poesia nem português. Até hoje, os gramáticos de fama condenam quem usa
“levava ele”. Levava-o, corrigem, e vamos todos ser idiotas conforme a norma
culta. Levava-o, para o inferno. E nada mais antipoético que um “levava ele”,
sentenciariam os asnos de 1930 a 2023 e vindouros.
Leia também: Machado de
Assis e seu gênio em dicionário de José Carlos Ruy
Há pouco, me lembrei de uma lição de
poesia que Manuel Bandeira recebeu desde a infância. Copio do seu livro
“Itinerário de Pasárgada”, que recomendo como uma lição fundamental de poesia e
literatura:
“Lembro-me de uns versos cujo autor
até hoje ignoro. Ouviu-os meu pai de um sujeito que um dia, no alpendre de uma
casinha do interior de Pernambuco, lhe veio pedir esmola. Meu pai, que gostava
de brincar, disse-lhe: ‘Pois não! Mas você antes tem de me dizer uns versos.’
Ora, o nosso homem não se fez de rogado e saiu-se com esta décima lapidar, cujo
primeiro verso, estropiado, mostra que a estrofe não era de sua autoria:
‘Tive uma choça, se ardeu-se.
Tinha um só dente, caiu.
Tive uma arara, morreu.
Um papagaio, fugiu.
Dois tostões tinha de meu:
Tentou-me o diabo, joguei-os.
E fiquei sem ter mais meios
De sustentar os meus brios.
Tinha uns chinelos… Vendi-os.
Tinha uns amores… Deixei-os.’ ”
Que lição de poesia, vinda de um
homem analfabeto para o futuro poeta! Mas é preciso ser um artista de mente
aberta, com o brilho do gênio para compreendê-la. Em outros, passaria batida,
ou se a lembrasse, não a julgaria digna de citação. Desprezaria o ouro no
outro, por preconceito. Mas Manuel Bandeira era grande poeta pelo justo motivo
da sua sensibilidade elástica, plástica.
A propósito do seu universo sem
fronteiras, vale a pena publicar trechos de uma conversa que tive com André
Cintra, jornalistae escritor, em 2019, que copio sem aviso ou autorização:
André – Bandeira era um bom
“homenageador”. Quando o Mário de Andrade morreu, Bandeira fez um poema
monumental para o Mário: “A Mário de Andrade Ausente”.
“A MÁRIO DE ANDRADE AUSENTE
Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunham:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra,
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue.
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente
Mas agora não sinto a sua falta.
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz já tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua.
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta”.
André – Houve uma época em que ele
assinou uma coluna de jornal onde fazia perfis dos companheiros de artes e
letras.
Eu – Grande crítico literário também.
O que ele escreveu sobre Ascenso Ferreira ninguém havia notado antes. Ele
destacava em Ascenso, como destacou em compositores de música popular, trechos
e sacadas fora do universo dos livros, foras das academias.
Depois da conversa, anoto que Manuel
Bandeira observou em Ascenso Ferreira uma interpretação / leitura do poema além
dos livros. Mais preciso, aqui:
“Quem não ouviu Ascenso dizer,
cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas não pode fazer
ideia das virtualidades verbais neles contidas”
Mas de volta à conversa com André
Cintra:
Eu – Bandeira falava, por
exemplo, que tinha inveja dos versos de Orestes Barbosa: “tu pisavas nos astros
distraída”
Fora da conversa, copio de modo
literal o que o poeta escreveu:
“Se fizessem aqui um concurso, como
fizeram na França, para apurar qual o verso mais bonito de nossa língua, talvez
eu votasse naquele de Orestes Barbosa em que ele diz: ‘tu pisavas os astros
distraída..’.”
E volto à conversa com André Cintra:
André – Você sabia que o Mário de
Andrade batizou a própria máquina de escrever de Manuela, em homenagem ao
Manuel Bandeira?
Eu: – Essa não! Não sabia. Em tempo:
o poeta era um homem de gênio, cultíssimo, erudito, que não fazia pose de
erudição. Ele era solteio, solteirão, por conta da tuberculose da juventude, que
ficou como uma marca.Mas ele era um amante sem hora marcada, na sua solidão. Tu
lembras daquele poema para Jaime Ovalle? (Na solidão,) “pensando na vida e nas
mulheres que amei”
E encerramos por enquanto aquela
nossa conversa. Motivado, copio esta solidão em poesia:
“Poema só para Jaime Ovalle
Quando hoje acordei, ainda fazia
escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada)
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando…
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei”.
De que matagal de parnasianismo e
fala educada, falsamente educada, o poeta saiu, a ponto de se tornar o
São João Batista do modernismo, na frase definitiva de Mário de Andrade.
Desde o poema de provocação Os Sapos, que virou hino de rebeldia para os
modernistas:
Os sapos
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
– “Meu pai foi à guerra!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas…”
Urra o sapo-boi:
– “Meu pai foi rei!”- “Foi!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
– A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo”.
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
– “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”.
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio…
Até este rompimento definitivo:
“POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo
de um vocábulo.
Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem
modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare.
– Não quero saber do lirismo que não
é libertação.”.
Bandeira é autor de versos que
atingiram aquele estado raríssimo de ir além do gosto da gente culta. Viraram
quase uma reflexão, um provérbio popular. Exemplos disso vêm sem muita
pesquisa: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”, ouvimos, quando
nada mais resta fazer. “Foi o meu primeiro alumbramento”, e vejam que palavra
bela, alumbramento, posta em circulação e moda na língua. Todos apreendemos de
imediato o seu significado, porque o poeta assim nos fala depois desta
revelação: “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração
batendo”. Assim como também apreendemos pela força de outro poema o sentido de
“Vou-me embora pra Pasárgada” – fugir, sumir, buscar abrigo em uma terra
utópica de felicidade.
Essas coisas não se escrevem por dom
ou presente dos deuses. Versos assim se conseguem ao longo de muita vida,
talento, estudo e trabalho. A linha do poema de Bandeira parece vir curtida,
decantada, palavra por palavra. Raro ele corre em voo livre de condor lá no
céu, pelo contrário: ele plana, paira na altura, contraditoriamente parecendo
voar baixo, ao nível do chão, do cotidiano, do minúsculo dos dias.
Nele, o sentido inteiro do poema está
antes no verso.
Essa linha lapidar que sobrevive ao
poema, à circunstância, não se encontra em outro poeta brasileiro com a
frequência com que se encontra em Manuel Bandeira. “A vida inteira que podia
ter sido e que não foi” é um verso que nos fica, para sempre, é uma luz que
guardamos até mesmo sem conhecer o poema Pneumotórax. Até mesmo sem saber o
último dia do corpo físico do poeta. A vida inteira que reconstruímos.
*Jornalista, escritor
Sem tambores e
sem clarins ttps://bit.ly/3Ye45TD
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