Microsoft inicia investida para vender tecnologia ao setor público. É cômodo (e barato) num primeiro momento, mas gera dependência e submete o Estado ao extrativismo de dados. O Brasil pode desenvolver-se em IA. Mas precisa de investimento robusto
Rafael Cardoso
Sampaio/OutrasPalavras
A Microsoft não apenas ajudou a
financiar o evento, mas também esteve em falas para a promoção do uso do
ChatGPT para organizações governamentais. Em suma, o modelo proposto é um
acesso privilegiado à API do GPT em um ambiente de nuvem da Microsoft que, em
teoria, garantiria o sigilo dos dados públicos. Para além do modelo super
robusto da OpenAI, o pacote ofereceria grandes vantagens para o serviço
público, incluindo ambientes que facilitarão o treinamento do GPT nos documentos
do setor em questão. Também se fala em reduções substanciais de preço pela
utilização do modelo, além de outros benefícios.
Também assistimos a apresentações
sobre o uso dessa tecnologia em várias instituições, mostrando implementações
bem-sucedidas em que o GPT foi treinado para processar seus documentos,
resultando em resultados favoráveis durante a fase de testes. Instituições como
a AGU e o TCU foram destacadas como exemplos desse sucesso.
Como o GPT é um modelo de grande
linguagem, ele parece bastante adequado para identificar padrões em documentos
com dados não estruturados, como os que são frequentemente produzidos pelo
governo brasileiro. De fato, como os funcionários observaram, o investimento no
uso do GPT “se paga sozinho”. O custo mensal do modelo para vários funcionários
públicos é significativamente menor do que o custo associado às suas horas de
trabalho.
Todos os convidados da Código
não-binário apresentaram em diferentes mesas e discussões ao longo do
evento o nosso receio de dependência direta das soluções oferecidas pelas big
techs. Em especial, propus a alguns servidores um desafio que repito aqui: “e
se o GPT em 10 anos for o Teams das IAs? Como sair?”. Este é o ponto. Não sai.
No momento, é impossível você sair de um modelo para outro e mesmo que seja
factível no futuro, certamente haverá grande perda. Todos os anos de
treinamento podem se perder. Sei bem disso, porque sou professor da UFPR e aqui
entregamos nossos dados e emails para a Microsoft. Então, sou um usuário do
Onedrive, Outlook, Office e, claro, Microsoft Teams. Não que eu tenha algo
contra esses produtos, mas vejo soluções melhores em outros lugares. E posso
tranquilamente dizer que não consigo imaginar a UFPR conseguindo sair da
Microsoft sem um investimento gigantesco ou ajuda do governo federal (ou
ambos).
Todavia, podemos inclusive dar um
passo atrás. Mesmo que o ChatGPT continue sendo o melhor modelo por anos, a
questão é que apenas continuamos alimentando o chamado “colonialismo de dados”.
Exportamos (vulgo, entregamos) nossos dados gratuitamente para as Big Tech do
Vale do Silício, enquanto importamos caro as tecnologias que elas desenvolvem.
Como virou chavão nas últimas décadas, os dados são o novo petróleo e o Brasil
caminha para continuar apenas exportando commodities. Neste caso, nossos dados.
É fundamental destacar que esse
problema não é novo. Ele ocorreu no início das empresas ponto-com nos anos 90 e
voltou a ocorrer com o surgimento da Web 2.0 e da mídia social. E agora estamos
na iminência de que isso ocorra novamente.
Em um momento muito fortuito, a
Academia Brasileira de Ciência acaba de lançar um excelente relatório, chamado
“Recomendações para o Avanço da Inteligência Artificial no Brasil”,
desenvolvido por um grupo de trabalho de especialistas multidisciplinares. Em
resumo, o relatório denota que as tecnologias de IA perpassam todos os setores
da economia e que seriam três pilares necessários para o avanço da IA:
talentos, dados e infraestrutura computacional capaz de processar esses dados.
Conforme avaliação de Virgílio de Almeida, professor emérito do Departamento de
Ciência da Computação da UFMG, membro da ABC e coordenador do estudo, o Brasil
só teria os dados.
Eu concordo inteiramente com isso e
especialmente sobre a necessidade urgente de uma política pública de fomento
para pesquisa e desenvolvimento em inteligência artificial, um ponto enfatizado
no relatório. Entretanto, por ora gostaria de tratar um pouco sobre o que pode
ser feito com os recursos atualmente disponíveis do ponto de vista do governo
federal.
É inegável que tenhamos talentos e
boa capacidade técnica dentro do setor público, o suficiente para o
desenvolvimento de ferramentas de IA e de modelos grandes de linguagem, como o
ChatGPT, para as nossas necessidades. Na prática, vários órgãos já estão
fazendo isso no Brasil, a exemplo de recentes casos de sucesso de AGU e TCU.
Também não podemos nos esquecer das universidades federais, que apresentam também
farta disponibilidade de conhecimento intelectual técnico para conduzir ou
ajudar em tais questões.
Pensando em termos de federação, é
notório que não temos capacidade de processamento o suficiente para a grande
quantidade de dados disponíveis, no entanto, há pelo menos duas exceções a
isso: o Serpro e a Dataprev. Possivelmente, o segredo neste momento é
simplificar o acesso. Ou seja, executar contratos superdimensionados e
flexíveis que permitam que diversas entidades governamentais tenham acesso a esses
serviços de forma mais fácil, ágil e econômica.
E como já destacado por Almeida,
temos quantidades massivas de dados guardados pelos diferentes ministérios e
órgãos públicos, que facilitam muito a criação de modelos personalizados para
nossos servidores, serviços públicos e pesquisadores.
E eu acrescentaria que temos notável
capacidade de investimento no país, para além do envolvimento direto do governo
federal. Exemplos notáveis incluem organizações como o INEP, agências de
pesquisa federais e estaduais, como CNPq, FAPESP e Araucária, e empresas
públicas como a Petrobras. Além disso, há instituições financeiras poderosas,
como o BNDES e o BB, bem como acesso a opções de financiamento internacional.
Além disso, há facilitadores ativamente envolvidos no estímulo ao crescimento
do setor industrial nacional, como o Sistema S e as federações do setor, que
podem ser envolvidos para impulsionar iniciativas de desenvolvimento.
Então, recomendações bem práticas:
Curto prazo:
1. Fazer uma pesquisa nacional com
servidores públicos e pesquisadores sobres principais usos, ferramentas,
necessidades, receios e dificuldades em termos de IA;
2. Mapeamento (urgente) e articulação
das principais soluções já desenvolvidas por órgãos públicos (federais,
estaduais e municipais). Certamente, os ministérios com maior capacidade para
isso são o de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o de Gestão e da Inovação
em Serviços Públicos (MGI), sendo que a ENAP e o Comitê Gestor da Internet
podem ser outros bons intermediários para isso.
3. Compartilhamento de conhecimentos
com base em casos aplicados, como o da AGU e o do TCU, além de outras dúzias
que ainda não ganharam devido reconhecimento.
4. Capacitação direta e constante de
servidores públicos e conscientização dos políticos profissionais, assessores e
partidos políticos;
5. Emitir urgentemente grandes
chamadas públicas de propostas para incentivar o desenvolvimento da IA, por
meio da colaboração conjunta do setor privado, startups, organizações sem fins
lucrativos, universidades e entidades governamentais para o desenvolvimento de
soluções de IA sustentáveis e viáveis para o país.
Médio prazo:
1. Construir grande parque nacional
de servidores tecnológicos, com efetivos serviços de armazenamento e
processamento em nuvem e supercomputadores para aumentar nosso poder de processamento
e o acesso de diferentes órgãos públicos;
2. Criação de um consórcio de
universidades públicas baseadas em princípios similares aos de Institutos
Nacionais de Ciência e tecnologia para ajudar no desenvolvimento intelectual e
tecnológico de modelos de LLMs próprios e outras soluções de IA;
3. Aprovar uma lei de regulação de IA
no Brasil, a exemplo do PL 2338/2023 e reformular de maneira ousada a
Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA).
Pelo que conversei na semana de
inovação, alguns ministérios, a exemplo do MGI, e outras entidades já estão
discutindo ou mesmo implementando várias iniciativas desse tipo. Meu ponto com
esse texto é reforçar a importância dessas ações e insistir que o uso agora de
soluções das big techs, como o ChatGPT, podem ser cômodas, mas são igualmente
restritivas. Como bem apontado pelo relatório da ABC, que merece ser
disseminado pelos servidores, precisamos sair de uma posição de consumidores
dessas tecnologias para ser construtores, desenvolvedores e, verdadeiramente,
inovadores.
Como falei no começo, servidores
públicos, vocês podem contratar hoje o ChatGPT, mas poderão ter em breve um
Teams. Que tal tentarmos algo diferente desta vez?
Imagem: Paweł Jońca/Natur
Viver é mais do que
existir https://bit.ly/3Ye45TD
Postado por Luciano Siqueira às 22:44 Nenhum comentário:
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