Descobertas arqueológicas e estudos fisiológicos desafiam mitos antigos, revelando o protagonismo das mulheres na caça e desconstruindo estereótipos de gênero
por Barbara Luz
Publicado 16/01/2024 13:04 | Editado 17/01/2024 07:57
Representação de como a caça pode ter sido nas Cordilheiras dos Andes há
nove mil anos. Análise dessa época revelou que a pessoa enterrada, que se
dedicava à caça, era do sexo feminino | Foto: Matthew Verdolivo, Uc Davis Iet
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Em um passado
distante, a narrativa sobre as atividades de caça na pré-história sempre foram
permeadas por estereótipos de gênero, com a crença comum de que os homens eram
os principais caçadores enquanto as mulheres se dedicavam apenas à coleta de
alimentos. No entanto, pesquisadoras de diferentes universidades estão
desenterrando estão desafiando essas suposições profundamente enraizadas,
revelando um papel significativo e ativo das mulheres na caça.
Sophia Chilczuk,
recém-formada na Seattle Pacific University, e Abigail Anderson, estudante de
fisiologia na mesma universidade, começaram a questionar essas suposições
quando arqueólogos, em 2018, descobriram os restos de uma caçadora durante uma
escavação no Peru. Entre os ossos, encontraram um kit de caça, repleto de
ferramentas, que desafiou as concepções tradicionais de atividades baseadas no
gênero. A descoberta levou a uma revisão de outros sítios arqueológicos, e a
conclusão, em 2020, foi de que a caça entre 8.000 e 14.000 anos atrás era
neutra em termos de gênero.
Chilczuk e
Anderson, junto a antropóloga biológica Cara Wall-Scheffler e outras duas
pesquisadoras, publicaram uma revisão da literatura na PLoS One, concluindo
que nas sociedades coletoras modernas, as mulheres desempenhavam um papel
dominante na captura da caça. Histórias de caçadoras existiam, disse
Wall-Scheffler, “mas compilar e mostrar que não são anedotas e sim um padrão,
era o que estávamos tentando fazer com este artigo”.
O estudo examinou
63 sociedades coletoras modernas, nos séculos 19 e 20, utilizando a base de
dados de lugares, idiomas, cultura e ambiente, encontrando evidências de
mulheres caçando em 50 delas – sendo 87% desse comportamento intencional. Nas
culturas em que a caça era crucial para a subsistência, as mulheres eram ativas
100% do tempo. Além disso, elas não só demonstravam flexibilidade em suas
abordagens à caça à medida que envelheciam, como ajustavam suas estratégias com
base na idade e no número de filhos ou netos. “Elas têm estratégias diferentes,
mas ainda estão sempre saindo para caçar”, disse Wall-Scheffler.
Chilczuk enfatiza
que os relatórios muitas vezes priorizam discussões sobre caçadores masculinos,
tornando difícil descobrir os padrões de caça das mulheres. “Pode haver tantas
coisas que estamos perdendo”, disse Chilczuk. “É natural ter suposições, mas é
nossa responsabilidade desafiá-las para entender melhor nosso mundo.”
Tammy Buonasera,
arqueóloga biomolecular da University of Alaska Fairbanks, que identificou o
sexo da caçadora encontrada no Peru, elogiou a conclusão do estudo, destacando
que as mulheres são frequentemente vistas “apenas como atrizes passivas na
história”. O reconhecimento das mulheres como caçadoras vem à tona em um
momento em que a antropologia está diversificando seus quadros, incentivando
uma reavaliação de como as evidências são interpretadas.
Segundo
Wall-Scheffler, os antropólogos, assim como qualquer pessoa, podem ser tentados
por uma narrativa simples. “A complexidade é relegada à anedota”, disse ela.
“Só temos que estar dispostos a cavar um pouco mais fundo.”
Mulher caçadora: a
evidência fisiológica
Outros dois
estudos, liderados por Cara Ocobock, professora assistente do Departamento de
Antropologia e diretora do Laboratório de Energética Humana da Universidade de
Notre Dame, em Indiana, nos Estados Unidos, e sua parceira de pesquisa, Sarah
Lacy, antropóloga com experiência em arqueologia biológica na Universidade de
Delaware, publicados simultaneamente na revista American
Anthropologist em novembro de 2023, aprofundam a discussão.
Suas descobertas indicam não apenas que as mulheres pré-históricas estavam
envolvidas na caça, mas que sua anatomia e biologia femininas as tornavam
intrinsicamente mais adequadas para essa atividade.
A pesquisa, que foi
capa da edição de novembro de 2023 da Scientific
American, desafia não apenas as narrativas históricas, mas
também preconceitos modernos sobre as capacidades físicas femininas. “Em vez de
vê-la como uma forma de apagar ou reescrever a história, nossos estudos estão
tentando corrigir a história que apagou as mulheres disso.”, disse Ocobock
O estudo
fisiológico destaca que as mulheres pré-históricas eram capazes de realizar
tarefas físicas exigentes, como a caça, por períodos prolongados devido a
fatores metabólicos. O estrogênio e a adiponectina, hormônios presentes em
maior quantidade no corpo feminino, desempenhavam papéis cruciais no
metabolismo, permitindo um desempenho atlético sustentado, além de protegerem
contra danos durante atividades físicas intensas.
O estrogênio, por
exemplo, ajuda a regular o metabolismo da gordura. “Como a gordura contém mais
calorias do que os carboidratos, é uma queima mais longa e mais lenta”,
explicou Ocobock, “o que significa que a mesma energia sustentada pode mantê-lo
ativo por mais tempo e retardar a fadiga”. Já a adiponectina amplifica o
metabolismo da gordura, permitindo que o corpo mantenha o curso durante longos
períodos, especialmente em grandes distâncias, protegendo os músculos de
rupturas.
Segundo Ocobock, a
estrutura anatômica das mulheres também é considerada vantajosa para a
resistência e eficácia na caça. “Com a estrutura de quadril tipicamente mais
larga das mulheres, elas são capazes de girar os quadris, alongando os passos.
E quanto mais passos você puder dar, mais ‘baratos’ eles serão do ponto de
vista metabólico, e quanto mais longe você puder chegar, mais rápido”, explicou
Ocobock.
“Quando você olha
para a fisiologia humana dessa maneira, você pode pensar nas mulheres como
corredores de maratona e nos homens como levantadores de peso”, conclui.
As descobertas
arqueológicas também corroboram a participação ativa da “mulher caçadora”.
Achados indicam que as mulheres pré-históricas não apenas compartilhavam dos
riscos da caça, como também valorizavam essa atividade. Lesões traumáticas
encontradas em fósseis de homens e mulheres sugerem uma participação
igualitária em caçadas de contato próximo, contrariando a ideia de uma divisão
estrita do trabalho por gênero.
“Encontramos esses
padrões e taxas de desgaste igualmente em mulheres e homens”, disse
ela. “Então, ambos estavam participando de caçadas de grande porte em
estilo de emboscada.” Ocobock também cita a escavação feita no Peru, onde as
mulheres foram enterradas com armas de caça. “Você não costuma ser
enterrado com algo, a menos que seja importante para você ou algo que você usou
com frequência em sua vida.”
Ao reconhecer as
mulheres como caçadoras, a antropologia está desafiando narrativas históricas e
preconceitos arraigados. A revelação do papel significativo das mulheres na
caça não apenas redefine a história, mas também desafia estereótipos de gênero
persistentes.
“Temos que mudar os
preconceitos que trazemos para a mesa”, alerta Ocobock, destacando a
necessidade de uma abordagem mais cuidadosa ao interpretar o papel das mulheres
na história da caça. “E num sentido mais amplo, você não pode presumir abertamente
as habilidades de alguém com base no sexo ou gênero que você atribuiu, olhando
para eles”, concluiu Ocobock.
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com informações de agências
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