quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Aos 110 anos de Ignácio Rangel, o legado de um pensador original da economia brasileira

 ECONOMIA

Como um pensamento singular se amplia e perpetua nos debates atuais sobre inflação, China, agricultura, mercado e socialismo.

Por Cezar Xavier

Publicado 20/02/2024 21:20

Ignacio Rangel

Ignácio Rangel (1914-1994) pode não ter alcançado renome internacional como alguns de seus contemporâneos, mas sua influência e contribuições para o pensamento econômico brasileiro são inegáveis. Em um país muitas vezes seduzido por ideias estrangeiras, Rangel destacou-se ao desenvolver uma teoria econômica poderosa e instigante, profundamente enraizada na realidade brasileira. Esta é a opinião de muitos economistas influenciados por sua obra, que destacam diferentes aspectos de sua singularidade como pensador.

Desde sua origem humilde na cidade de Mirador, no Maranhão, em 20 de fevereiro de 1914, Ignácio Rangel demonstrou uma capacidade excepcional de análise e síntese das complexidades da economia e da política brasileira. Seu pensamento peculiar foi forjado sob a influência não apenas do marxismo, mas também de economistas burgueses como Keynes e Schumpeter, além do revolucionário russo Vladimir Lênin.

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“A Inflação Brasileira” e a superioridade marxista de I. Rangel

Dualidade básica

O economista e ex-ministro Luis Carlos Bresser Pereira destaca que Rangel emergiu como parte do grupo de intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas que, durante os anos 50, reuniram-se em torno do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Sua contribuição para repensar radicalmente a sociedade e a economia do Brasil foi monumental. Ao lado de figuras como Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos e Cândido Mendes de Almeida, Rangel deixou sua marca na história intelectual do país.

Um dos principais conceitos desenvolvidos por Rangel, na opinião de Bresser Pereira, foi a noção de “dualidade básica da economia brasileira”. Sua teoria, diferente de meras transposições de teorias internacionais, era histórica e complexa, mostrando como a história do Brasil foi marcada por dois polos, interno e externo, que se sucediam e se alternavam ao longo do tempo. Essa abordagem dinâmica revelou uma compreensão profunda das classes sociais e dos setores econômicos do país.

Para compreender a China

Um seguidor apaixonado de Rangel é o economista e estudioso sobre a economia da China, Elias Jabbour, diretor de pesquisas do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), em Xangai. Sua proposta de uma “Nova Economia do Projetamento” para descrever o estágio atual de desenvolvimento econômico na China está diretamente relacionada com a obra de Rangel. Ele argumenta que as teorias econômicas convencionais não são mais adequadas para explicar essa nova realidade, e propõe a retomada de categorias de análise do economista brasileiro Ignacio Rangel para compreender o fenômeno chinês.

Rangel, em seu livro “Elementos de Economia do Projetamento” (1959), introduziu conceitos fundamentais que iluminam a compreensão da economia sob uma perspectiva de planejamento. Jabbour resgata essas ideias de Rangel para elaborar um novo corpo conceitual capaz de dar conta das características específicas da economia chinesa contemporânea.

Influência leninista

Jabbour não hesita em afirmar que Ignácio Rangel foi o mais brilhante pensador brasileiro do século XX e, possivelmente, o marxista mais completo e original da América Latina. Ele destaca a habilidade de Rangel em sintetizar as leis do funcionamento da formação social brasileira, revelando os caminhos para o desenvolvimento econômico e social do país.

Jabbour mergulha na obra de Ignacio Rangel para ressaltar também a importância da influência de Lenin em seu pensamento, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento desigual do capitalismo e ao papel do imperialismo na dinâmica econômica brasileira.

Jabbour destaca como a influência de Lenin na obra de Rangel é frequentemente negligenciada, apesar de ser de fundamental importância para a compreensão da relação entre campo e cidade e das questões agrárias no Brasil. Ele enfatiza como Rangel apropriou-se do legado leninista como uma atualização do marxismo, especialmente diante do contexto do imperialismo.

Uma das contribuições mais marcantes de Lenin para o pensamento de Rangel, segundo Jabbour, está na compreensão do desenvolvimento desigual como uma lei do capitalismo. Lenin argumentava que na vida real as posições econômicas se trocam constantemente, desafiando a ideia de um desenvolvimento linear e uniforme. Essa visão foi essencial para Rangel ao analisar a dinâmica entre os setores agrícola e industrial no Brasil.

Jabbour ressalta também a importância da relação entre imperialismo e desenvolvimento desigual, conforme observado por Lenin. Jabbour cita o próprio Rangel ao afirmar que as transformações históricas no âmbito da hegemonia do sistema capitalista central têm impacto direto na capacidade do Brasil de tirar proveito dos choques interimperialistas.

Falsas polêmicas agrícolas

O geógrafo brasileiro Roberto César Cunha também analisa falsas polêmicas que permearam o debate sobre a agricultura brasileira ao longo das décadas, destacando a importância do pensamento de Rangel para uma compreensão mais abrangente e não-linear da realidade agrícola do país. Ele citando debates como a permanência de relações feudais na agricultura nos anos 1960 e a suposta oposição entre produtos exportados e produtos para consumo interno nos anos 1970.

No entanto, é no contexto do século XXI que Cunha identifica uma nova falsa polêmica: a dicotomia entre agricultura familiar e agronegócio. Ele argumenta que essa abordagem simplista não reflete a realidade complexa do campo brasileiro, onde diferentes formas de organização produtiva coexistem e se complementam.

Para Cunha, a visão de Ignacio Rangel oferece um contraponto fundamental a esses dualismos superficiais. Rangel entendia a agricultura brasileira dentro de uma lógica não-linear da totalidade social, observando as contradições concretas da sociedade em sua totalidade. Contrariando as teses da Cepal, Rangel reconhecia que, mesmo mantendo relações atrasadas, o capitalismo penetrava de forma significativa no campo brasileiro.

Cunha ressalta a visão de Rangel sobre a relação entre cidade e campo, argumentando que é a cidade que transforma o campo e que o desenvolvimento é impulsionado pelo aprofundamento do parcelamento do processo produtivo e pelo crescimento das áreas urbanas.

Sobre a inflação

De acordo com o ex-ministro Bresser Pereira, no livro inovador “A Inflação Brasileira”, publicado em 1963, Rangel apresentou uma teoria revolucionária sobre a inflação, desafiando tanto as teorias monetaristas quanto as keynesianas. Para ele, a inflação era um mecanismo de defesa da economia em tempos de crise, uma reação das empresas em mercados oligopolistas frente à recessão e aos recursos ociosos. Essa visão inovadora influenciou até mesmo figuras proeminentes como Delfim Netto, que implementou políticas econômicas baseadas em suas ideias.

Para Jabbour, sua análise da inflação brasileira, detalhada em seu livro seminal sobre o tema, também é uma das contribuições mais marcantes de Rangel. Jabbour destaca a profundidade analítica dessa obra, que se tornou uma verdadeira teoria da inflação e continua sendo uma referência fundamental para o pensamento econômico brasileiro.

Ele destacou como Rangel percebia a inflação não apenas como um fenômeno econômico, mas como uma expressão de luta de classes no Brasil. Essa abordagem, segundo Jabbour, diferencia o pensamento de Rangel de outros economistas e oferece uma análise mais profunda e contextualizada dos problemas econômicos do país.

O economista Luis Nassif diz que uma das características marcantes do pensamento de Rangel era sua independência em relação às grandes escolas de pensamento econômico, como a monetarista e a estruturalista. Enquanto essas escolas divergiam quanto às causas da inflação, atribuindo-a ao excesso de demanda ou a problemas estruturais, Rangel questionava essas visões.

Para Rangel, a chave para entender a inflação brasileira residia na capacidade ociosa da economia. Ele argumentava que o aumento da emissão monetária não necessariamente provocava inflação, pois parte dessa emissão era absorvida pela retenção de estoques pelas empresas. Essa visão inovadora contrariava as teorias convencionais e destacava a importância de considerar a dinâmica real da economia.

O mercado e o desenvolvimento nacional

Nassif também ressaltou a contribuição singular de Rangel para o entendimento da dinâmica econômica brasileira ao revisitar o pensamento desse “grande mestre”, e o papel fundamental que ele atribui a um mercado de capitais responsável.

Apesar de não ser economista por formação, Rangel possuía um profundo conhecimento da microeconomia e da análise setorial brasileira, baseando-se em uma observação empírica dos fatos econômicos. Nassif destaca que Rangel seguia uma tradição pouco celebrada no país, a dos conhecedores da economia real que deduzem teorias a partir de suas observações concretas, citando figuras como Roberto Simonsen.

Além disso, Rangel foi um crítico do Plano Trienal de Celso Furtado, argumentando que desestruturaria o incipiente mercado financeiro brasileiro, essencial para o desenvolvimento econômico do país. Ele defendia a aliança entre o capital financeiro e o setor industrial como motor do progresso nacional. Jabbour também enfatizou que muitos economistas famosos falharam em oferecer soluções eficazes para os problemas do Brasil, e cita nomes como Celso Furtado e Roberto Campos como exemplos disso.

Nassif ressalta que as análises de Rangel têm grande relevância até os dias de hoje, especialmente em um contexto de debates sobre políticas econômicas e desenvolvimento nacional.

Rumo ao socialismo

Jabbour destaca a profunda influência de Rangel na compreensão da formação social brasileira e na busca por um caminho único ao socialismo.

Inspirado por Lênin, Rangel desenvolveu uma compreensão precisa da categoria de formação social e sua lei fundamental no Brasil. Essa visão, enraizada na dualidade entre atraso e dinamismo, permitiu a Rangel identificar o avançado em meio ao pretérito em todas as esferas da economia e da superestrutura brasileira.

A importância da industrialização e da transição para o socialismo na visão de Rangel levou-o a falar sobre a necessidade de uma estatização do comércio exterior e enfatizou a importância de políticas que promovam o desenvolvimento industrial e tecnológico do país.

Além disso, Rangel desenvolveu teses importantes sobre a dinâmica capitalista, a questão agrária e a intervenção do Estado na economia. Sua tese da dualidade, que articula diversas contribuições teóricas à realidade econômica brasileira, continua sendo uma ferramenta essencial para compreender as especificidades do desenvolvimento nacional.

Outro aspecto abordado é a relação do Brasil com outros países, especialmente a China. Jabbour discutiu como a interdependência entre o Brasil e a China pode influenciar o desenvolvimento econômico e político do país, e como isso se relaciona com a visão de Rangel sobre a transição para o socialismo.

Jabbour ressalta que Rangel não se limitou a explicar as razões do atraso brasileiro, mas buscou apontar caminhos para o dinamismo econômico e social do país. Segundo ele, Rangel enxergava a síntese entre capitalismo industrial e capitalismo de Estado como um passo em direção ao socialismo, destacando a importância de uma atuação reguladora do Estado no processo de acumulação.

Sempre relevante

No entanto, o golpe militar de 1964 interrompeu a vida pública de Rangel, afastando-o de suas funções no BNDES. Apesar disso, seu pensamento continuou relevante e profundo. Em meados dos anos 70, Rangel reapareceu com previsões surpreendentes sobre uma iminente crise econômica global, baseando-se na teoria das ondas longas de Kondratieff. Sua visão perspicaz, conforme salienta Bresser Pereira, foi confirmada pela crise do petróleo no ano seguinte, marcando o início do declínio dos “anos dourados” do desenvolvimento capitalista.

Foi nos anos 80 que o trabalho de Rangel recebeu reconhecimento renovado, com republicações de seus livros e uma crescente apreciação de sua obra por parte dos estudantes e acadêmicos. Sua análise pioneira da economia brasileira continuou relevante, prevendo a crise fiscal do Estado e propondo soluções inovadoras para os desafios econômicos do país, conforme analisa o ex-ministro.

Jabbour deixa seu tributo a Rangel levantando importantes questionamentos sobre a relevância de seu legado para o presente e o futuro do Brasil. Ele destaca a necessidade de estudar a obra de Rangel para compreender as razões do não realizado desenvolvimento brasileiro, bem como para construir um novo projeto nacional rumo ao socialismo.

Ignácio Rangel faleceu em 1994, aos 82 anos, deixando um legado duradouro para o pensamento econômico brasileiro. Sua abordagem original e profundamente enraizada na realidade nacional continua a inspirar economistas e estudiosos, lembrando-nos da importância de pensar o Brasil em sua própria individualidade histórica. Como observa Bresser Pereira, “para compreender a economia brasileira, os brasileiros terão que voltar muitas vezes ao pensamento de Rangel”.

Este texto se baseou em artigos dos autores mencionados:
A originalidade e a singularidade teórica de Ignácio Rangel
Ignácio Rangel sobre a China: “uma dupla disruptura intelectual”
Falsas polêmicas na agricultura e Ignácio Rangel
Lênin e Ignácio Rangel
Ignacio Rangel, 100 anos: “a nação como categoria histórica”
Ignacio Rangel e os 50 anos de “A Inflação Brasileira”
Mestre Ignácio Rangel e a importância do mercado financeiro

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