Como um pensamento
singular se amplia e perpetua nos debates atuais sobre inflação, China,
agricultura, mercado e socialismo.
Por Cezar Xavier
Publicado 20/02/2024 21:20
Ignacio Rangel
Desde sua origem
humilde na cidade de Mirador, no Maranhão, em 20 de fevereiro de 1914, Ignácio
Rangel demonstrou uma capacidade excepcional de análise e síntese das
complexidades da economia e da política brasileira. Seu pensamento peculiar foi
forjado sob a influência não apenas do marxismo, mas também de economistas
burgueses como Keynes e Schumpeter, além do revolucionário russo Vladimir
Lênin.
Leia também: Elias Jabbour: Por que estudar Ignacio Rangel
Ignácio Rangel: “Fogo, Blindagem e Conjuntura”
“A Inflação Brasileira” e a superioridade marxista de I.
Rangel
Dualidade básica
O economista e
ex-ministro Luis Carlos Bresser Pereira destaca que Rangel emergiu como parte
do grupo de intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas que, durante os
anos 50, reuniram-se em torno do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB). Sua contribuição para repensar radicalmente a sociedade e a economia do
Brasil foi monumental. Ao lado de figuras como Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos
e Cândido Mendes de Almeida, Rangel deixou sua marca na história intelectual do
país.
Um dos principais
conceitos desenvolvidos por Rangel, na opinião de Bresser Pereira, foi a noção
de “dualidade básica da economia brasileira”. Sua teoria, diferente de meras
transposições de teorias internacionais, era histórica e complexa, mostrando
como a história do Brasil foi marcada por dois polos, interno e externo, que se
sucediam e se alternavam ao longo do tempo. Essa abordagem dinâmica revelou uma
compreensão profunda das classes sociais e dos setores econômicos do país.
Para compreender a
China
Um seguidor
apaixonado de Rangel é o economista e estudioso sobre a economia da China,
Elias Jabbour, diretor de pesquisas do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD),
em Xangai. Sua proposta de uma “Nova Economia do Projetamento” para descrever o
estágio atual de desenvolvimento econômico na China está diretamente
relacionada com a obra de Rangel. Ele argumenta que as teorias econômicas
convencionais não são mais adequadas para explicar essa nova realidade, e
propõe a retomada de categorias de análise do economista brasileiro Ignacio
Rangel para compreender o fenômeno chinês.
Rangel, em seu
livro “Elementos de Economia do Projetamento” (1959), introduziu conceitos
fundamentais que iluminam a compreensão da economia sob uma perspectiva de
planejamento. Jabbour resgata essas ideias de Rangel para elaborar um novo
corpo conceitual capaz de dar conta das características específicas da economia
chinesa contemporânea.
Influência
leninista
Jabbour não hesita
em afirmar que Ignácio Rangel foi o mais brilhante pensador brasileiro do
século XX e, possivelmente, o marxista mais completo e original da América
Latina. Ele destaca a habilidade de Rangel em sintetizar as leis do
funcionamento da formação social brasileira, revelando os caminhos para o
desenvolvimento econômico e social do país.
Jabbour mergulha na
obra de Ignacio Rangel para ressaltar também a importância da influência de
Lenin em seu pensamento, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento
desigual do capitalismo e ao papel do imperialismo na dinâmica econômica
brasileira.
Jabbour destaca
como a influência de Lenin na obra de Rangel é frequentemente negligenciada,
apesar de ser de fundamental importância para a compreensão da relação entre
campo e cidade e das questões agrárias no Brasil. Ele enfatiza como Rangel
apropriou-se do legado leninista como uma atualização do marxismo,
especialmente diante do contexto do imperialismo.
Uma das
contribuições mais marcantes de Lenin para o pensamento de Rangel, segundo
Jabbour, está na compreensão do desenvolvimento desigual como uma lei do
capitalismo. Lenin argumentava que na vida real as posições econômicas se
trocam constantemente, desafiando a ideia de um desenvolvimento linear e
uniforme. Essa visão foi essencial para Rangel ao analisar a dinâmica entre os
setores agrícola e industrial no Brasil.
Jabbour ressalta
também a importância da relação entre imperialismo e desenvolvimento desigual,
conforme observado por Lenin. Jabbour cita o próprio Rangel ao afirmar que as
transformações históricas no âmbito da hegemonia do sistema capitalista central
têm impacto direto na capacidade do Brasil de tirar proveito dos choques
interimperialistas.
Falsas polêmicas
agrícolas
O geógrafo
brasileiro Roberto César Cunha também analisa falsas polêmicas que permearam o
debate sobre a agricultura brasileira ao longo das décadas, destacando a
importância do pensamento de Rangel para uma compreensão mais abrangente e
não-linear da realidade agrícola do país. Ele citando debates como a
permanência de relações feudais na agricultura nos anos 1960 e a suposta
oposição entre produtos exportados e produtos para consumo interno nos anos
1970.
No entanto, é no
contexto do século XXI que Cunha identifica uma nova falsa polêmica: a
dicotomia entre agricultura familiar e agronegócio. Ele argumenta que essa
abordagem simplista não reflete a realidade complexa do campo brasileiro, onde
diferentes formas de organização produtiva coexistem e se complementam.
Para Cunha, a visão
de Ignacio Rangel oferece um contraponto fundamental a esses dualismos
superficiais. Rangel entendia a agricultura brasileira dentro de uma lógica
não-linear da totalidade social, observando as contradições concretas da
sociedade em sua totalidade. Contrariando as teses da Cepal, Rangel reconhecia
que, mesmo mantendo relações atrasadas, o capitalismo penetrava de forma
significativa no campo brasileiro.
Cunha ressalta a
visão de Rangel sobre a relação entre cidade e campo, argumentando que é a
cidade que transforma o campo e que o desenvolvimento é impulsionado pelo
aprofundamento do parcelamento do processo produtivo e pelo crescimento das
áreas urbanas.
Sobre a inflação
De acordo com o
ex-ministro Bresser Pereira, no livro inovador “A Inflação Brasileira”,
publicado em 1963, Rangel apresentou uma teoria revolucionária sobre a
inflação, desafiando tanto as teorias monetaristas quanto as keynesianas. Para
ele, a inflação era um mecanismo de defesa da economia em tempos de crise, uma
reação das empresas em mercados oligopolistas frente à recessão e aos recursos
ociosos. Essa visão inovadora influenciou até mesmo figuras proeminentes como
Delfim Netto, que implementou políticas econômicas baseadas em suas ideias.
Para Jabbour, sua
análise da inflação brasileira, detalhada em seu livro seminal sobre o tema,
também é uma das contribuições mais marcantes de Rangel. Jabbour destaca a
profundidade analítica dessa obra, que se tornou uma verdadeira teoria da
inflação e continua sendo uma referência fundamental para o pensamento
econômico brasileiro.
Ele destacou como
Rangel percebia a inflação não apenas como um fenômeno econômico, mas como uma
expressão de luta de classes no Brasil. Essa abordagem, segundo Jabbour,
diferencia o pensamento de Rangel de outros economistas e oferece uma análise
mais profunda e contextualizada dos problemas econômicos do país.
O economista Luis
Nassif diz que uma das características marcantes do pensamento de Rangel era
sua independência em relação às grandes escolas de pensamento econômico, como a
monetarista e a estruturalista. Enquanto essas escolas divergiam quanto às
causas da inflação, atribuindo-a ao excesso de demanda ou a problemas
estruturais, Rangel questionava essas visões.
Para Rangel, a
chave para entender a inflação brasileira residia na capacidade ociosa da
economia. Ele argumentava que o aumento da emissão monetária não necessariamente
provocava inflação, pois parte dessa emissão era absorvida pela retenção de
estoques pelas empresas. Essa visão inovadora contrariava as teorias
convencionais e destacava a importância de considerar a dinâmica real da
economia.
O mercado e o
desenvolvimento nacional
Nassif também
ressaltou a contribuição singular de Rangel para o entendimento da dinâmica
econômica brasileira ao revisitar o pensamento desse “grande mestre”, e o papel
fundamental que ele atribui a um mercado de capitais responsável.
Apesar de não ser
economista por formação, Rangel possuía um profundo conhecimento da
microeconomia e da análise setorial brasileira, baseando-se em uma observação
empírica dos fatos econômicos. Nassif destaca que Rangel seguia uma tradição
pouco celebrada no país, a dos conhecedores da economia real que deduzem
teorias a partir de suas observações concretas, citando figuras como Roberto
Simonsen.
Além disso, Rangel
foi um crítico do Plano Trienal de Celso Furtado, argumentando que
desestruturaria o incipiente mercado financeiro brasileiro, essencial para o
desenvolvimento econômico do país. Ele defendia a aliança entre o capital
financeiro e o setor industrial como motor do progresso nacional. Jabbour
também enfatizou que muitos economistas famosos falharam em oferecer soluções
eficazes para os problemas do Brasil, e cita nomes como Celso Furtado e Roberto
Campos como exemplos disso.
Nassif ressalta que
as análises de Rangel têm grande relevância até os dias de hoje, especialmente
em um contexto de debates sobre políticas econômicas e desenvolvimento
nacional.
Rumo ao socialismo
Jabbour destaca a
profunda influência de Rangel na compreensão da formação social brasileira e na
busca por um caminho único ao socialismo.
Inspirado por
Lênin, Rangel desenvolveu uma compreensão precisa da categoria de formação
social e sua lei fundamental no Brasil. Essa visão, enraizada na dualidade
entre atraso e dinamismo, permitiu a Rangel identificar o avançado em meio ao
pretérito em todas as esferas da economia e da superestrutura brasileira.
A importância da
industrialização e da transição para o socialismo na visão de Rangel levou-o a
falar sobre a necessidade de uma estatização do comércio exterior e enfatizou a
importância de políticas que promovam o desenvolvimento industrial e
tecnológico do país.
Além disso, Rangel
desenvolveu teses importantes sobre a dinâmica capitalista, a questão agrária e
a intervenção do Estado na economia. Sua tese da dualidade, que articula
diversas contribuições teóricas à realidade econômica brasileira, continua
sendo uma ferramenta essencial para compreender as especificidades do
desenvolvimento nacional.
Outro aspecto
abordado é a relação do Brasil com outros países, especialmente a China.
Jabbour discutiu como a interdependência entre o Brasil e a China pode
influenciar o desenvolvimento econômico e político do país, e como isso se
relaciona com a visão de Rangel sobre a transição para o socialismo.
Jabbour ressalta
que Rangel não se limitou a explicar as razões do atraso brasileiro, mas buscou
apontar caminhos para o dinamismo econômico e social do país. Segundo ele,
Rangel enxergava a síntese entre capitalismo industrial e capitalismo de Estado
como um passo em direção ao socialismo, destacando a importância de uma atuação
reguladora do Estado no processo de acumulação.
Sempre relevante
No entanto, o golpe
militar de 1964 interrompeu a vida pública de Rangel, afastando-o de suas
funções no BNDES. Apesar disso, seu pensamento continuou relevante e profundo.
Em meados dos anos 70, Rangel reapareceu com previsões surpreendentes sobre uma
iminente crise econômica global, baseando-se na teoria das ondas longas de
Kondratieff. Sua visão perspicaz, conforme salienta Bresser Pereira, foi
confirmada pela crise do petróleo no ano seguinte, marcando o início do
declínio dos “anos dourados” do desenvolvimento capitalista.
Foi nos anos 80 que
o trabalho de Rangel recebeu reconhecimento renovado, com republicações de seus
livros e uma crescente apreciação de sua obra por parte dos estudantes e
acadêmicos. Sua análise pioneira da economia brasileira continuou relevante,
prevendo a crise fiscal do Estado e propondo soluções inovadoras para os
desafios econômicos do país, conforme analisa o ex-ministro.
Jabbour deixa seu
tributo a Rangel levantando importantes questionamentos sobre a relevância de
seu legado para o presente e o futuro do Brasil. Ele destaca a necessidade de
estudar a obra de Rangel para compreender as razões do não realizado
desenvolvimento brasileiro, bem como para construir um novo projeto nacional rumo
ao socialismo.
Ignácio Rangel
faleceu em 1994, aos 82 anos, deixando um legado duradouro para o pensamento
econômico brasileiro. Sua abordagem original e profundamente enraizada na
realidade nacional continua a inspirar economistas e estudiosos, lembrando-nos
da importância de pensar o Brasil em sua própria individualidade histórica.
Como observa Bresser Pereira, “para compreender a economia brasileira, os
brasileiros terão que voltar muitas vezes ao pensamento de Rangel”.
Este texto se
baseou em artigos dos autores mencionados:
A originalidade e a singularidade teórica de Ignácio
Rangel
Ignácio Rangel sobre a China: “uma dupla disruptura
intelectual”
Falsas polêmicas na agricultura e Ignácio Rangel
Lênin e Ignácio Rangel
Ignacio Rangel, 100 anos: “a nação como categoria
histórica”
Ignacio Rangel e os 50 anos de “A Inflação Brasileira”
Mestre Ignácio Rangel e a importância do mercado
financeiro
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