Há manhãs em que fico revoltado ao ler os jornais. Aconteceu
segunda-feira passada quando vi a manchete de "O Globo":
"Pressão religiosa", com o subtítulo: "À espera do papa, Dilma
enfrenta lobby para vetar o projeto para vítimas de estupro que Igreja associa
a aborto".
Por Drauzio Varella*, na Folha de S.Paulo
Esse projeto de lei, que tramita desde 1999, acaba de ser
aprovado em plenário pela Câmara e pelo Senado e encaminhado à Presidência da
República, que tem até 1º de agosto para sancioná-lo. Se não houver veto, todos
os hospitais públicos serão obrigados a atender em caráter emergencial e
multidisciplinar as vítimas de violência sexual.
Na verdade, o direito à assistência em casos de estupro está
previsto na Constituição. O SUS dispõe de protocolos aprovados pelo Ministério
da Saúde especificamente para esse tipo de crime, que recomendam antibióticos
para evitar doenças sexualmente transmissíveis, antivirais contra o HIV,
cuidados ginecológicos e assistência psicológica e social.
O problema é que os hospitais públicos e muitos de meus
colegas, médicos, simplesmente se omitem nesses casos, de forma que o
atendimento acaba restrito às unidades especializadas, quase nunca acessíveis
às mulheres pobres.
O Hospital Pérola Byington é uma das poucas unidades da
Secretaria da Saúde de São Paulo encarregadas dessa função. Lá, desde a
fundação do Ambulatório de Violência Sexual, em 1994, foram admitidas 27 mil
crianças, adolescentes e mulheres adultas.
Em média, procuram o hospital diariamente 15 vítimas de estupro,
número que provavelmente representa 10% do total de ocorrências, porque antes
há que enfrentar as humilhações das delegacias para lavrar o boletim de
ocorrência.
As que não desistem ainda precisam passar pelo Instituto
Médico Legal, para só então chegar ao ambulatório do SUS, calvário que em quase
todas as cidades exige percorrer dezenas de quilômetros, porque faltam serviços
especializados mesmo em municípios grandes. No Pérola Byington, no Estado mais
rico da federação, mais da metade das pacientes vem da Grande São Paulo e de
municípios do interior.
Em entrevista à jornalista Juliana Conte, o médico Jefferson
Drezzet, coordenador desse ambulatório, afirmou: "Mesmo estando claro que
o atendimento imediato é medida legítima, na prática ele não acontece. Criar
uma lei que garanta às mulheres um direito já adquirido é apenas reconhecer
que, embora as normas do SUS já existam, o acesso a elas só será assegurado por
meio de uma força maior. Precisar de lei que obrigue os serviços de saúde a
cumprir suas funções é uma tristeza".
Agora, vamos ao ponto crucial: um dos artigos do projeto
determina que a rede pública precisa garantir, além do tratamento de lesões
físicas e o apoio psicológico, também a "profilaxia da gravidez".
Segundo a deputada Iara Bernardi, autora do projeto de lei, essa expressão
significa assegurar acesso a medicamentos como a pílula do dia seguinte. A
palavra aborto sequer é mencionada.
Na semana passada, o secretário-geral da Presidência recebeu
em audiência um grupo de padres e leigos de um movimento intitulado Pró-Vida,
que se opõe ao projeto por considerá-lo favorável ao aborto.
Pró-Vida é o movimento que teve mais de 19 milhões de
panfletos apreendidos pela Polícia Federal, na eleição de 2010, por associar à
aprovação do aborto a então candidata Dilma Rousseff.
Na audiência, o documento entregue pelo vice-presidente do
movimento foi enfático: "As consequências chegarão à militância pró-vida
causando grande atrito e desgaste para Vossa Excelência, senhora presidente,
que prometeu em sua campanha eleitoral nada fazer para instaurar o aborto em
nosso país".
Quem são, e quantos são, esses arautos da moral e dos bons
costumes? De onde lhes vem a autoridade para ameaçar em público a presidente da
República?
Um Estado laico tem direito de submeter a sociedade inteira
a uma minoria de fanáticos decididos a impor suas idiossincrasias e
intolerâncias em nome de Deus? Em que documento está registrada a palavra do
Criador que os nomeia detentores exclusivos da verdade? Quanto sofrimento
humano será necessário para aplacar-lhes a insensibilidade social e a sanha
punitiva?
*Drauzio Varella é médico cancerologista. Por 20 anos
dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos pioneiros no
tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica
ainda hoje. É autor do livro "Estação Carandiru" (Companhia das
Letras).
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