Pesquisadora Esther Solano Gallego conversou com cerca de 30
jovens que utilizam a tática Black Bloc nas manifestações.
O Conversa Afiada reproduz entrevista publicada no site do
Brasil de Fato:
Black blocs, o alvo é a Copa
Paulo Hebmüller
de São Paulo
Jovens na casa dos 20 anos, com emprego e acesso ao ensino
superior, embora ambos de qualidade discutível; submetidos à precariedade dos
serviços públicos do Estado em áreas como saúde, transporte e educação;
defensores de uma visão de mundo na qual atacar símbolos do capitalismo não
pode ser considerado um ato violento, pois a verdadeira violência contra a
população é praticada pelo sistema político e corporativo – dados como esses
compõem o perfil dos black blocs de São Paulo, na visão da pesquisadora Esther
Solano Gallego.
“Eles querem ser escutados, mas por alguém que tenha um
olhar um pouco mais imparcial e se disponha a realmente entendê- los”, diz a professora
de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Esther vai às ruas desde junho – primeiro como manifestante; depois, com o
colega Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas, passou a
conversar com diferentes grupos para procurar entender suas motivações.
A pesquisa acabou centrada na dinâmica entre os policiais, a
cargo de Alcadipani, e os adeptos da tática black bloc. É ao lado deles que a
professora fica nas manifestações. O objetivo do trabalho, de acordo com
Esther, não é emitir julgamentos ou defender qualquer dos lados, mas sim tentar
entender um fenômeno social que cabe aos pesquisadores conhecer.
Uma das questões que agora ocupam a pesquisadora tem a ver
com a criação de uma força-tarefa, unindo Ministério Público e as polícias
Civil e Militar, anunciada pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo no
início de outubro.O secretário Fernando Grella Vieira defende o indiciamento
dos black blocs por associação criminosa.
Na entrevista a seguir, a espanhola Esther Solano – que se
doutorou em Ciências Sociais em meio à crise econômica em seu país e veio para
o Brasil em 2011, diz que é difícil saber se as medidas levarão os jovens a
radicalizar suas ações ou a retroceder por medo da prisão. Certo mesmo é que
por enquanto os adeptos da tática permanecem nas ruas, e que seu objetivo é
chamar a atenção do mundo – literalmente – na Copa de 2014, cuja abertura
coincidirá com o primeiro aniversário das grandes manifestações de junho.
Brasil de Fato – Com quantos jovens que utilizam a tática
Black Bloc você já conversou?
Esther Solano Gallego – Mais ou menos 30. Comecei a falar
com eles porque me parece muito importante entender o que está acontecendo, e a
única forma de entender é sair para a rua e conversar com eles, o que para mim,
por paradoxal que pareça, é muito fácil. Esses jovens não consideram os meios
de comunicação de massa seus interlocutores. Mas, quando eu me apresentei como
professora e pesquisadora, me aceitaram muito bem.
Qual o perfil que você já identificou neles?
É bem heterogêneo. Temos que diferenciar: há aqueles que
sabem realmente o que significa a tática black bloc, leem e sabem articular um
discurso mais ou menos politizado, e que são a grande maioria dos que
entrevistei. Mas claro que há alguns que simplesmente aproveitam o momento de
caos para cobrir o rosto. Tenho tentado conversar com eles também, porque acho
que estão representando sua própria forma de violência. Mas são a minoria na
minha pesquisa, e essas conversas não têm dado muitos frutos.
Em relação ao primeiro grupo, são jovens que têm um projeto
político, que quando saem para a rua para quebrar um banco entendem que esse
gesto tem um significado. Os mais novos têm 17 anos, mas em geral a idade vai
de 20 a 24 anos; a grande maioria trabalha, muitos estudam. Há alguns formados,
a maioria em universidade particular, mas há também gente de universidades
públicas como a USP. A maioria é de classe média baixa. São usuários do
transporte público, do SUS, da escola pública, mas a maioria não vem daquela
periferia mais pobre e excluída.
Eles fazem parte do que vários estudiosos têm chamado de um
subproletariado que vem crescendo muito nos últimos anos no Brasil?
A maioria, sim. São jovens que trabalham há pouco tempo, mas
já conhecem bem a precariedade do Estado. Friso novamente que a maior parte não
é daquela periferia que praticamente não tem acesso às manifestações.
Que tipo de leitura e formação política têm esses jovens com
quem você conversa?
Tem de tudo. Alguns leram bastante os anarquistas e
articulam bem essa linguagem. Outros não leramtanto, mas têm uma visão política
bem articulada. São basicamente duas coisas: a grande maioria possui uma visão
política mesmo – talvez não a da academia –, e enxerga bem o que quer fazer.
Vale a pena reiterar que a maior parte dos jovens que entrevistei tem um
pensamento definido como base de suas ações, o que não impede que, em momentos
de manifestações maiores, apareçam indivíduos com muito menos articulação ou
que simplesmente se aproveitam do momento.
Há alguma conexão com a origem dos black blocs na Alemanha
do final da década de 1980 e com os chamados movimentos antiglobalização dos
anos de 1990?
A maioria dos que entrevistei não pensava no que era o black
bloc antes das manifestações. Muitos falam que começaram a pensar nisso depois
daquele protesto do dia 13 de junho (no Centro de São Paulo), quando a Polícia
Militar, como eles dizem, “chegou batendo”. Alguns já tinham lido alguma coisa,
mas a grande maioria se envolveu pela ação e reação do momento.
Como você analisa a acusação de que eles são fascistas e
estão a serviço de outra causa que não é a intenção original das manifestações?
Acho que aí existem duas coisas. Primeiro, que a esquerda
mais institucionalizada, mais partidária, talvez se sinta muito afastada do que
aconteceu. Minha percepção é de que há um certo ressentimento com isso, porque
ninguém contou com os partidos de esquerda, com os sindicatos ou com os
movimentos tradicionais para ir à rua. Outro aspecto é que, em todas as
conversas que tive com eles, não percebi nenhuma indicação de que sejam
manipulados ou de que respondam a outro grupo. Creio que a motivação é a
indignação própria, e que eles têm um grau de autonomia suficiente para não ser
movidos por outro grupo.
O anticapitalismo é o discurso mais forte?
Uma jovem me deu uma ótima explicação: em São Paulo a ação
começou com o discurso black bloc internacional, de anticapitalismo e ataque
aos símbolos do capital, mas depois foi se apropriando do discurso das
manifestações brasileiras. Ou seja, talvez não tanto contra o capital, mas
incorporando as bandeiras e as reivindicações dos protestos: mudanças e
melhoria do sistema político de forma geral. O anarquismo é a inspiração, mas,
durante as conversas, aparecem muito mais a precariedade do Estado brasileiro e
a violência institucional do que as ideias anarquistas como motivações de sua
presença nas ruas.
Eles também se colocam como a linha de frente contra a
polícia, não é?
Eles dizem que nunca convocam as manifestações, e que vão à
rua para proteger os manifestantes. São duas ações: uma que eles chamam de
proteção – a linha de frente –, e outra,
de ação direta. Essa é a forte agora: chamar a atenção, “dar um grito”,
utilizando a violência como forma de expressar a indignação. Vale a pena
perguntar por que esses jovens chegaram ao ponto de enxergar na violência a
única forma de ser escutados.
Os black blocs de São Paulo já podem ser considerados um
grupo?
Eles sempre falam que o black bloc não é um grupo, mas uma
tática. No final das contas, não são muitos os que saem na rua. Acho que no Rio
de Janeiro o movimento é maior. Em São Paulo, não são tantos assim, e acabam
sendo as mesmas pessoas que a polícia já levou para a delegacia, já identificou
etc. Há também outros que vão aparecendo, que simplesmente cobrem o rosto, e aí
você perde a noção de quem é quem. As novas medidas da Segurança Pública em São
Paulo podem representar um ponto de virada. Quase todos os black blocs,
digamos, mais frequentes já foram para a delegacia. Os policiais também muitas
vezes são os mesmos. Então já pedem a documentação, revistam as mochilas etc.
Imagino que a polícia saiba quem é a maior parte deles.
Eles têm receio de ser presos e processados, agora que o
Estado anunciou o endurecimento da reação?
Sem dúvida. Os que já têm uma passagem por delegacia receiam
ser presos novamente e considerados reincidentes. Agora podem ser enquadrados
até por formação de quadrilha. Processar por associação criminosa me parece
excessivo, embora deva dizer que não tenho grande conhecimento do Direito em
geral e do brasileiro em particular. Mas a questão é que os delegados passam a
ter legitimado pelo Estado o poder de fazer esse enquadramento. O Estado, no
seu papel de protetor da propriedade pública e privada, está se valendo de seu
aparato policial e jurídico para propor o endurecimento das penas.
Você já teve algum problema nas manifestações?
Nunca. Comigo os jovens são muito respeitosos, e a polícia
também. Isso também pode parecer paradoxal em razão das cenas de violência nas
manifestações, mas o fato é que minha experiência destes meses nas ruas é esta,
tanto com os policiais como com os Black blocs. Mas claro que fico com um pouco
de medo quando começam a aparecer pedras e bombas.
O que eles acham de ser chamados de vândalos ou baderneiros?
Eles são absolutamente contra essa dicotomia criada entre o
“bom manifestante” e o “ruim”, categorias que a imprensa coloca para tentar
defini-los. Eles dizem que o que fazem não é violência, é performance – é um
tipo de espetáculo, em que querem atingir símbolos para chamar a atenção. O
discurso é de que a verdadeira violência é a de um sistema político que não dá
respostas para a população e que mantém, por exemplo, índices altíssimos de
homicídios e de mortes no trânsito. Para eles, a violência é a do sistema, e o
que fazem é chamar a atenção para essa violência política e corporativa.
Críticos ao redor do mundo dizem que essa tática sequer
arranha o capitalismo.
É. Inclusive há todas aquelas incoerêcias do tipo quebrar um
banco, mas usar iPhone. Isso é parte do paradoxo humano. Claro que eles sabem
que o dono do banco não está nem aí quando depredam uma agência – mas que
conseguem chamar a atenção sobre as coisas que para eles estão equivocadas,
tanto no governo quanto na ordem econômica, isso conseguem, até porque de fato
a espetacularização dos acontecimentos por parte da imprensa é evidente. Agora,
a partir da constatação de que as ruas estão ficando esvaziadas, já presenciei
diálogos entre eles sobre se a população está entendendo ou não o que eles
tentam fazer.
Você esteve na manifestação do dia 25 de outubro (quando o
coronel da PM Reynaldo Simões Rossi foi agredido)?
Não, mas depois conversei com algumas pessoas que foram. O
fato é que o Movimento Passe Livre (MPL) tem muita capacidade convocatória,
então conseguiu juntar bastante gente que utiliza a tática black bloc. Como já
disse, é um movimento muito heterogêneo, e entre eles há quem acredite numa
violência mais focada e mais simbólica, e outros que acreditam numa violência
mais pesada; os que são mais articulados e os menos, como aliás em todo grupo
social. Quando você junta tantas pessoas, num estado de emoções à flor de pele
– o componente emocional é muito importante –, com grandes tensões com a
polícia, era claro que ia acontecer o que aconteceu. À noite é quando a tensão
aumenta e todo mundo vai perdendo a paciência. É sempre o pior momento das
manifestações.
Você conhece os rapazes que foram presos?
Os que eu conheço não foram presos. Sei que houve prisão de
gente do MPL, anarcopunks etc. Ou seja, foi uma manifestação bem heterogênea.
Não dá para falar que só havia black blocs.
Você acha que, a partir do episódio do espancamento do
coronel, a PM e a Justiça vão endurecer definitivamente as ações contra os
black blocs?
Claramente as políticas vão endurecer. O governador Alckmin
já falou da necessidade de penas mais rígidas para quem agride policiais. O
espancamento do coronel Reynaldo vai esquentar muito os ânimos. Foi uma
agressão filmada, transmitida em todos os meios de comunicação, e
espetacularizada, de um PM de alta patente. Depois houve a resposta da
presidenta Dilma oferecendo ajuda à PM de São Paulo. É claro que isso vai
trazer como consequência uma série de respostas institucionais, radicalizando o
discurso, tanto em nível policial como jurídico. O problema será entrar numa
dinâmica de ação-reação violenta na qual as posturas dos dois lados endureçam.
O black bloc veio para ficar?
Pelo menos por enquanto, sim. Mas, a partir dessas medidas
do governo, será que eles vão se radicalizar? Ou vão retroceder com medo de ser
presos? Não sei. De qualquer maneira, a Copa está aí e o foco deles é fazer um
espetáculo nela para chamar a atenção de todo o mundo – de todo o mundo mesmo!
Pode até acontecer de a ação policial ser muito dura e conseguir esvaziar o
movimento. Afinal, eles são jovens de vinte e poucos anos, e é possível que
fiquem com medo de ser presos. Mas a ideia é estar na Copa.
E logo depois tem a eleição…
A espiral da violência vem aumentando. Estou preocupada com
o que possa vir a acontecer no ano que vem.
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