Por Vera Paoloni, em seu blog:
Melgaço, no Marajó, Pará, tem o pior IDH - Índice de
Desenvolvimento Humano do país, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano no
Brasil 2013, divulgado no final de julho. São 24 mil habitantes, dos quais 12
mil não sabem ler e nem escrever, apenas 681 pessoas frequentam o ensino médio,
saneamento é zero, saúde é rarefeita e internet só de vez em quando e apenas
por celular. O melhor de Melgaço é o povo, as pessoas, atestam Maribel, Oyainis
e Maribel as três médicas e o médico cubano Orlando que estão morando e
trabalhando no município marajoara desde 21 de setembro, há quase 3 meses. Eles
integram o programa audacioso e certeiro "Mais Médicos", que leva
assistência e médicos a municípios carentes e vulneráveis. Ponto pro Ministério
da Saúde e pra presidenta Dilma Rousseff.
Se o povo é o melhor de Melgaço, o pior é a água.
Ribeirinho, Melgaço não tem água tratada e nem saneamento básico. Isso gera
micoses e contaminações genitais. Há gravidez muito precoce e um índice
alarmante de hipertensão que atinge muitos jovens, resume o quarteto médico
cubano que atende 24 pessoas, no mínimo, todo dia em Melgaço, de segunda a
sexta. Com a consulta média de 30 minutos, salvo situações mais complicadas e
que exigem mais tempo. Em todas as consultas, a medicina preventiva em ação:
tratar a água com hipoclorito de sódio, ferver a água, só pra citar um exemplo.
Pobreza e generosidade
Quase a metade, 48% da população de Melgaço é pobre, aponta
o Mapa da Pobreza do IBGE publicado em 2003 Grande parte da população do campo
tem remuneração de R$ 71,50, fazendo com que as famílias na zona rural
sobrevivam, em média, com R$ 662 por mês - menos que um salário mínimo. As
distâncias são grandes e se leva até 15 dias pra cruzar o espaço de mais de 6
mil quilômetros. Com toda essa adversidade, o povo de Melgaço é acolhedor e
generoso, garantem as médicas e o médico cubanos.
15 horas de barco
Em português entrevistei as três médicas e o médico ontem
(19.dez) à noite, em Belém. Na capital, fizeram um treinamento na área de saúde
e retornam segunda-feira 23, bem no período de recesso natalino. De Melgaço a
Breves, uma hora de barco e de Breves a Belém, mais 14 horas. Ao todo 15 horas
pra chegar em Belém, atravessando a baía do Marajó. Maribel Saborit, Oyainis
Santos, Orlando Penha e Maribel Hernandez, médicas e médico cubanos se
conheceram não em Cuba, país em que nasceram, estudaram, se formaram, casaram,
tiveram filhos e trabalharam. Foi em solo brasileiro, em Brasília, que os
quatro se encontraram pela primeira vez, em agosto. Agora trabalham em Melgaço
e lá ficarão por 3 anos.
9 anos de estudo
Nem a imensidão de água da baía do Marajó, o calor ou as
travessias de barco até as comunidades assustam o quarteto médico cubano. Os
quatro trabalharam em missões humanitárias na Venezuela e na Bolívia. Estudaram
os nove anos da formação de medicina cubana: 6 da medicina geral e mais 3 da
medicina integral, algo semelhante à residência médica brasileira, em que a
especialização é feita juntamente com trabalho prático. E os quatro trabalhavam
em Cuba.
Maribel Saborit tem 21 anos de profissão. Maribel Hernanez,
19 anos. Oyanis, 8 anos e Orlando, 22 anos. Cuba orientou como critério de
participação no programa Mais Médicos, o mínimo de uma missão humanitária.
Orlando esteve no Paquistão e Venezuela. Oyainis, na Venezuela. Maribel Saborit
e Maribel Hernandez, na Venezuela e Bolívia. Além dos 9 anos de estudo, atuação
em uma missão humanitária por 3 anos.
Um médico em casa?
Embora o quarteto fale num bem compreensível portunhol,
indago se não falarem bem o português fez com que algum paciente deixasse de
entendê-los. "De jeito nenhum diz Oyainis. A gente olha pra eles, conversa
e se entende. Fazemos um amplo interrogatório, anotamos, fazemos exames físicos
completos".
E Maribel Saborit completa: "o povo é muito acolhedor,
generoso e agradecido. Fomos a uma comunidade ribeirinha, fizemos travessia de
barco e na casa de um senhor diabético de 86 anos ouvimos, depois do exame: 4
médicos aqui, quatro médicos me visitando em casa, meu Deus posso morrer feliz.
Nunca tinha visto um médico"!
Sem essa de dr, dra
Fico surpresa quando me dizem que se apresentam aos
pacientes como Maribel, Oyainis, Orlando. Assim, sem dr., dra, termos que aqui
no Brasil são acrescidos à profissão de médicos. Maribel Saborit ri e me diz:
"por que dr., dra? Somos iguais, só tivemos mais chance de estudar, ter
uma graduação. Mas nossa identidade é a mesma de quando nascemos".
Nem açaí e nem farinha
Como a jornada de trabalho em Melgaço é de 40 horas
semanais, igual a Cuba, pergunto o que fazem no final de semana pra driblar a
saudade de casa, já que as famílias ficaram em Cuba. "Lavamos e passamos
nossas roupas, limpamos nossos quartos, lemos, entramos na internet pra passar
correio eletrônico, descansamos". E Orlando informa que em julho vão de
férias a Cuba.
Os quatro me contam que Belém e Melgaço são "mais
quente que Cuba", mas isso não atrapalha. Gostam da comida à base de
peixe, frango, carne, arroz, feijão. Só açaí e farinha não faz parte do
cardápio deles. "Muito forte o açaí" diz Maribel Saborit sorridente.
Eu afianço a elas e ele que não sabem o que estão perdendo. E rimos todos.
Internet, problemão
O contato com a família é via e-mail, pois falar pelo
celular é muito caro. Cada um tem um tablet 3G, que faz parte dos equipamentos
do Mais Médicos. E eles compraram um pacote basicão da Vivo, "mas os
créditos somem muito rápido", se queixam. Como falar por telefone é caro
demais, sobra conversar por e-mail na internet do celular.
Eu digo a elas e ele que quem mora e luta na Amazônia quando
vara uma notícia pro mundo, rompe o cordão sanitário do isolamento em que nos
encontramos. O acesso à internet poderia ser uma forma de ajudar a romper esse
cordão, mas temos o pior acesso de todas as cinco regiões do país e no Marajó,
o pior acesso do Pará. Estamos ilhados, portanto.
Rendimentos compartilhados
Afinal, o que vocês ganham de salário fica com vocês ou vai
pra família, indago? "Parte fica conosco, parte vai para nossas famílias e
outra parte vai para o nosso governo, para ajudar o nosso povo cubano", me
diz Maribel Hernandez. "Mas o que ficamos é suficiente para nos manter,
para lazer. A prefeitura de Melgaço paga nosso alojamento e esse é muito bom:
tem um quarto para cada um de nós, com banheiro, cama, ar condicionando. Temos
mais que suficiente", fala Maribel Saborit.
E Oyainis completa: "A saúde em Cuba precisa da ajuda
de todos nós, porque o país sofre um embargo econômico que é muito doloroso
para nossa gente. Então, a ajuda precisa vir de nós, cubanos e de nossos
aliados".
Faz parte da nossa formação retribuir
A conversa vai chegando ao fim, pois há várias pessoas
chamando o quarteto médico cubano e querendo tirar fotos, indagar, conversar,
rir junto. E eu faço a última inquirição: o que fez vocês saírem de Cuba e vir
pra Melgaço? E Maribel Saborit diz": olha, faz parte da nossa formação
ajudar países e pessoas mais necessitadas com nosso conhecimento que foi dado
de forma coletiva e gratuita. Só estamos retribuindo".
Encerramos a conversa e eu fico matutando que grandeza é
essa de Cuba e do seu povo que tanto tem a nos ensinar! Se eu conheço quantos
médicos do meu país que fariam algo semelhante aqui mesmo. Em janeiro vou a
Melgaço numa caravana formativa da Fetagri/CUT no Marajó. Quero rever meu novo
quarteto camarada e amigo e conversar com o povo atendido pelas médicas e pelo
médico cubanos. (V.P)
E só finalizando mesmo: fizemos uma pequena homenagem às 3
médicas cubanas e ao médicos cubano ontem à noite na formatura de encerramento
do curso de Formação de Formadores promovido pela Escola Chico Mendes da
Amazônia e da qual participamos 46 pessoas, de todas as CUTs da Amazônia.
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