Por Glauber Piva
Em dezembro do ano passado escrevi sobre a relação entre a
classe média brasileira e a política. Naquele momento, como o principal debate
se dava em torno da proposta de Fernando Haddad de alteração na base de cálculo
do IPTU em São Paulo, o tema me serviu de apoio para a seguinte afirmação: no
Brasil, existe uma “sorrateira e envolvente visão de classe média (que) pensa a
vida política brasileira como se estivesse num shopping center”.
Algumas semanas depois, os rolezinhos parecem escancarar
essa tese. A classe média brasileira de repente se vê acuada. Ela acredita que
os “cavalões” da periferia (expressão do senador Aloisio Nunes
Ferreira-PSDB/SP) estão tentando reduzir o seu direito de dar um rolê
livremente, de consumir irresponsavelmente e de enamorar-se de sua própria
estética.
Nesse episódio dos rolezinhos, três coisas concentraram
minha atenção.
Primeiro, uma intuição. Este episódio recoloca no centro das
preocupações da sociedade brasileira a mesma temática das manifestações de
junho passado, mas, agora, com outra roupagem: mobilidade urbana, espaços
públicos, desigualdade social, políticas públicas. Agora, como outrora, não há
uma pauta política que mobilize logo de cara, mas ela está latente. São jovens
que querem ser reconhecidos e vistos de um jeito que foge ao hábito empolado e
discursivo tão afeito à nossa “elite branca” (para citar a expressão do
ex-governador Cláudio Lembo - PFL/SP). Eles estão ocupando e tensionando em
territórios que nunca lhes pertenceram e, assim, jogam na nossa cara que o
Brasil será outro, queiramos ou não.
Segundo, uma confirmação. O Estado brasileiro continua sendo
um braço armado a serviço dos mesmos donos do poder. A Polícia Militar se
assume como segurança patrimonial e se permite violentar o direito de ir e vir
de jovens que, simplesmente, pretendem desfilar por corredores comerciais com
corpos e ruídos que desafiam a estética de seus patrões. Sob a mesma lógica age
o judiciário, que liminarmente proíbe os rolezinhos. O governador de SP faz o
mesmo, tratando a juventude como questão de polícia e não como alvo de
políticas públicas de educação, trabalho, lazer e cultura.
Terceiro, um alegria. Os rolezinhos nos oferecem uma poesia
divertida. Se por um lado a classe média deseja que o ambiente público seja
como um shopping, um lugar de ordem e segurança, defendido por regras próprias
formuladas por quem coloca o consumo e o indivíduo no centro da vida, por
outro, usa o shopping como metáfora e concretização de seu mundo-ideal: a
política é suja e, portanto, é o ‘mundo de fora’ em contraposição ao shopping
center que lhe conforta, que, para ela, é o ‘mundo de dentro’. O ‘mundo de
fora’ seria a realidade-real, o espaço urbano próprio a esses jovens que
carregam a indelével marca de suas pobrezas. O ‘mundo de dentro’, o dos
shoppings, é limpo e sem tensões. A periferia não gosta mais disso. E isso é
poesia.
Os rolezinhos nos escancaram essas três dimensões. Há uma
tensão social que não vai nos abandonar simplesmente com voto direto ou polícia
nas ruas. Não é uma questão de participação política bissexta, nem de segurança
pública como instrumento de repressão. Amanhã os rolezinhos se transformarão em
outra coisa, terão outros nomes, mas a juventude da periferia não vai calar a
própria voz. Ela continuará disputando o que dá sentido à vida. Ela quer ver e
ser vista, falar e ser ouvida, consumir e dar sentido (e cheiro, ritmo e cor)
ao que consome.
Quando se diz que no Brasil o espaço público está em
disputa, quer-se dizer, também, que o próprio Estado está em disputa. Até os
anos 1990, os governos enxergavam e atendiam a, no máximo, 25% da população.
Com as políticas afirmativas, de promoção da igualdade e combate à pobreza, a
população visível para o Estado brasileiro quadruplicou e, com isso, a classe
média se sentiu, em alguma medida, órfã. O Estado deixou de ser apenas dela e,
agora, querem que ela divida também seu mundinho de consumo, seus shoppings
centers.
O que essa juventude está fazendo é, sobretudo, exercitar
seu legítimo e incômodo jeito de fazer da política e, assim, disputar o
território do comum. Eles estão construindo, ainda que de maneira
surpreendente, condições para uma redistribuição permanente dos lugares e das
identidades, do visível e do invisível na sociedade brasileira. “Essa divisão
do sensível é uma espécie de subjetividade política, um modo negociado de
visibilidade que permite ver quem pode tomar parte no que é entendido como
comum.”[1]
É claro que é preciso reconhecer que há um medo presente
naqueles que sempre frequentaram, entre seus iguais , esses espaços. E sentir
esse medo não faz com que as pessoas sejam más. Isso evidencia, porém, o
profundo estranhamento que o diferente causa. Ao não se reconhecer no Outro,
talvez intuam o distúrbio profundo e perturbador que o alargamento da
democracia pode causar. Quando a periferia decide ir ao shopping paulistano, ou
ao Leblon no Rio de Janeiro, ou a tantos lugares dedicados à uma estética
voltada ao consumo, evidencia que vivemos uma violência estrutural. Quando o
Estado nega a ela o direito pleno de circular por esse espaços, evidencia seu
medo e sua posição em favor da classe dominante.
Não nos enganemos. Os jovens da periferia não sairão da
pauta. Ontem foram mais que os R$ 0,20. Hoje, é muito mais que os rolês. Amanhã
serão quaisquer outras coisas. Mas, todas elas, sem exceção, jogarão na nossa
cara o quão elitistas e violentos somos e que Outro mundo é possível.
* Glauber Piva é sociólogo e ex-diretor da ANCINE (Agência
Nacional do Cinema).
[1] Sobre isso, ver Glauber Piva, Cultura: políticas
públicas e novas visibilidades. In: Emir Sader. (Org.). 10 anos de governos
pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. 1ed.São Paulo: Boitempo, 2013, v. 1,
p. 285-301.
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