Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:
Adoro carnaval de rua. E São Paulo está ótima com os blocos
que polvilham a cidade.
É claro que, em meio a essa fauna exuberante, há sempre
alguns com a velha tática de “conquista'' da idade da pedra lascada, que
consiste em “abater a presa e consumi-la ainda viva''.
Juro que não sei onde enfiar a cara de vergonha quando um
rapaz agarra o braço de uma moça e insiste que só o largará quando receber um
beijinho. Ou quando o piolho dá um “armlove'' e, insano, tenta arrastar a moça
até ser contido por outros foliões – ou não. Presenciei uma cena patética e
recorrente: depois de receber uma miríade de respostas desabonadoras, e sem
soltar o braço de uma mulher bastante educada, um deles pediu “por favor, por
favor, me dá um beijo''. Cara, cadê sua dignidade? Isso é o fundo do poço! O
amor próprio é o primeiro a morrer quando a alcateia está olhando.
Mas, em comparação a outros carnavais, tenho a grata
impressão de que há mais pessoas conscientes e sentindo-se empoderadas para não
deixar barato esse tipo de assédio sexual. Fiquei sabendo de casos em que a
polícia foi acionada e pôs água no chope dos desmiolados que achavam que a
bunda alheia é patrimônio público. Não sei o que aconteceu, mas torço para que
o boletim de ocorrência tenha sido devidamente registrado. Vai que o dito
resolve prestar um concurso público no futuro…
Em outro momento, depois de dar um tapa na cara de um
sujeito que tentara lhe beijar à força, uma colega ouviu em alto e bom tom,
quase como uma crítica social: “Mas é carnaval, vadia! Quem está aqui sozinha é
porque quer isso''. O sujeito aprendeu com amigos e família, viu na televisão,
ouviu no rádio, que este é um momento em que as regras de convivência estão
suspensas e todos procuram sexo. Para ele, a rua é um imenso Tinder offline
(não que todos usem o app dessa forma, mas o desespero de alguns por lá é
deprimente). Daí, quando rejeitados, expressam toda a sua perplexidade em
bordões como “vagabundas'', “vadias'' e “piranhas''.
Convivo com cenas patéticas, como essa, com uma infeliz
frequência. Afinal de contas, moro em São Paulo e seria impossível não me
deparar com esse universo bizarro de jovens mimados que acham que a cidade é
uma extensão da tela do seu videogame, as ruas, um anexo do banheiro que usam
pela manhã diariamente e o carro, uma continuidade do seu pênis. Ou
complemento, o que varia de acordo com a forma com que cada um encara suas
frustrações. Tempos atrás postei alguns textos sobre isso, mas tratando da
noite paulistana. Que também pode ser uma várzea completa.
E como já escrevi nessas ocasiões, para esses jovens,
provavelmente não se enquadram na categoria de “vagabundas'' apenas suas mães e
avós, que dormem o sono das santas católicas, enquanto quem é “da vida'' povoa
o carnaval. Porque “mulher de bem'' está em casa a essa hora, não aceitaria
nunca colocar um vestido acima do joelho e deixar as costas de fora, não bebe,
fuma ou tem vícios detestáveis, não ama apenas por uma noite e não ri em
público, escancarando os dentes a quem quer que seja. “Mulher de bem''
permanece em casa para servir o “homem de bem'' e estar à sua disposição como
empregada, psicóloga, enfermeira, cozinheira ou objeto sexual, a qualquer hora
do dia e da noite.
Por que? Porque, na sua cabeça, elas pertencem a eles.
Porque assim sempre foi, é assim que se ensinou e foi aprendido. É a tradição,
oras! E o discurso da tradição, muitas vezes construído de cima para baixo para
manter alguém subjugado a outro não pode ser questionado. Quem ousa sair desse
padrão, pode ser vítima de alguns “corretivos sociais''.
Esse tipo de ataque carnavalesco é sim uma forma de
violência sexual cometida por ricos e pobres. E das mais perversas porque, como
tal, não são encaradas. Ainda mais quando envolvem jovens ricos, bêbados ou
não. Pois estes não cometem crimes, apenas fazem “molecagens'' e, portanto,
fora de cogitação qualquer punição. Isso se aplica apenas a moços pobres.
E não se engane. Não é só meia dúzia de celerados. Ataques
como esse traduzem o que parte da nossa sociedade machista pensa. Que uma
mulher que conversa de forma simpática em um bloco de carnaval está à
disposição, que uma mulher que se veste da forma como queira está à disposição,
que um grupo de mulheres sem “seus homens'', brincando na rua, está à
disposição.
Como já trouxe aqui, o homem precisa começar a mexer na sua
programação que, desde pequeno, o ensina a ser agressivo e a tratar mulheres
como coisas. Raramente a ele é dado o direito que considere normal oferecer
carinho e afeto em público. Bom é xingar, machucar, deixar claro quem manda e
quem obedece. O contrário é coisa de mina. Ou, pior, de bicha.
E quando uma mulher não tem a garantia de que não será
importunada, ofendida ou violentada, com ações ou palavras, toda a sociedade
tem uma parcela de culpa. Pelo que fez. Pelo que deixou de fazer.
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