Por Filipe Rafaeli
"Vocês sabem que o hobby dos brasileiros é falar mal do
SUS, né?" Era assim, fazendo esta pergunta, que eu começava um papo com
cada um que viesse falar comigo no leito do hospital. 48 horas antes, eu
recebia autorização da torre de controle da base aérea militar de Pirassununga
para pouso na pista 02 central. Eu estava sozinho, em um Cessna 152 Aerobat, e
estava chegando para participar do campeonato nacional de acrobacias aéreas.
No terceiro e penúltimo dia em que eu estava internado, me
recuperando da cirurgia da fratura da cabeça do meu fêmur direito, uma senhora
com um rosto amigável e um sorriso incontido, postou-se ao lado da minha cama e
se apresentou como voluntária da Santa Casa de Pirassununga. Com jeito, pediu
para eu responder a uma pesquisa de satisfação sobre como foi meu atendimento.
Isso me espantou um pouco. Alguém em algum momento imaginava o SUS fazendo
pesquisa de satisfação?.
Na cama à minha esquerda, um trabalhador. É repositor de
prateleira de supermercado. Ele contava como, com sua motocicleta, bateu de
frente em outra moto e veio ter no hospital. Na cama em minha frente, um senhor
de meia idade, marceneiro, contava como quebrou o braço ao cair de uma escada.
Em uma outra cama, à esquerda, um pintor contava como foi seu acidente de moto
– mais um! – Depois que ele teve alta, sua cama foi ocupada por um servente de
pedreiro com problemas pulmonares.
Ao saberem que sou piloto de acrobacias aéreas, eles se
juntaram para ouvir a minha história. Tive a sensação de que estavam ávidos por
ouvir uma história de filme hollywoodiano. Daquelas cheias de explosões,
corridas malucas e mocinhos de óculos escuros. Fiz um pequeno resumo: "Eu
estava dormindo, lá pelas quatro da madrugada, fui levantar para fazer um xixi,
tropecei em alguma coisa, caí e quebrei minha perna". Imaginem a cara de
decepção de meus companheiros de infortúnio.
O campeonato havia começado mas no primeiro dia não tivemos
voos da minha categoria. À noite, fizemos uma confraternização. Lá pelas tantas
fomos todos para os hotéis de trânsito da Base aérea. Me disponibilizaram um
quarto de tropa, com dezenas de beliches. Calmamente, e contente, tomei meu
banho, apaguei a luz e fui dormir. Pelo meio da noite levantei para fazer xixi,
só que a escuridão total do quarto fez com que eu desse um tropeção. Estava
quase chegando ao interruptor. A queda deve ter sido cinematográfica. Caí por
cima de alguma coisa, torcendo a perna direita. Foi dolorido, muito dolorido.
Horas depois passei pelo Hospital da Base Aérea, onde fui
medicado com analgésicos. De lá removido de ambulância para a Santa Casa de
Misericórdia de Pirassununga. Durante o trajeto, a enfermeira da Academia da
Força Aérea foi elogiando os médicos e o atendimento daquele hospital da
cidade. Minha desconfiança aumentava à medida que ela elogiava a Santa Casa.
"Pobre mulher, acredita que vai me confortar falando isso", pensei.
Ainda na maca, no pronto-atendimento, me falaram que o
ortopedista já sabia do meu caso e queria me ver. Só não tinha vindo naquele
momento porque estava realizando uma cirurgia. Para mim isso foi positivo.
"Deve ser um sujeito experiente", acreditei. Enquanto isso, fiz os
exames de praxe para um sujeito nesta situação.
Passados alguns minutos, eis que surge o médico e eu, todo
ansioso, começo a questioná-lo, se não seria melhor que eu fosse removido para
o hospital do meu plano de saúde, que ficava a 200 quilômetros dali. Até então,
tudo que eu vira me dera uma boa impressão. Gostei do profissionalismo das
enfermeiras e da postura do médico. Ele olhou e demorou um pouco para
responder. Mais tarde, disse que se fosse operar lá seria no dia seguinte e com
outro médico. Eu pergunto: por que não agora? Passado o "rebuliço"
dessa pergunta, o médico ativo vai conferir se pode ser naquele momento. E
"voilá", minutos depois minha maca já estava a caminho da sala de
cirurgia.
A moça que empurra minha maca para a sala de cirurgia me
pergunta se eu não tinha nenhum familiar para me acompanhar. De forma meio
jocosa, respondo que não deu tempo, que a operação havia sido decidida alguns
segundos antes dela colocar as mãos na maca.
Descubro depois que operar rápido uma fratura do colo do
fêmur é essencial para uma boa recuperação. Mais um ponto para o ser humano,
antes do médico, que ali trabalha.
Se você não for um fã de aviação, porque a base da
Esquadrilha da Fumaça, ou Esquadrilha de Demonstração Aérea, é lá, ou não
frequenta botequins de gosto duvidoso, porque a caninha 51 também é de lá, você
nunca ouviu falar em Pirassununga.
Sobre hospitais que atendem muito bem pelo SUS, a gente ouve
de poucos, como o Hospital de Clínicas e o Incór, em São Paulo, e os hospitais
de Jaú e Barretos, para quem luta contra o câncer. E o resto? O senso comum
manda dizer "um lixo". O mesmo senso comum que também afirma
peremptoriamente que a saúde é péssima, a educação não funciona, e o país é o
país da desesperança. Qualquer pessoa que faça um comentário positivo sobre a
saúde pública ouve em seguida um repúdio a esse comentário. Parece que a pessoa
que elogiou é natural de Plutão, um planeta que está na moda.
Essa é a cultura nacional do pessimismo. Faz parte da
síndrome de vira-latas, transtorno cognitivo magistralmente descrito por Nelson
Rodrigues. É. O pessimismo é contagiante.
Daí, após começar cada diálogo que tive no hospital falando
do passatempo predileto dos pessimistas de plantão, de como o "SUS é
péssimo", eu dizia que que nunca havia sido tão bem atendido em um
hospital em minha vida. Nunca vi tantas pessoas atendendo tão bem em um quarto
em quatro dias de internação. Fui testemunha do trabalho de mais de trinta
profissionais. Absolutamente todos adoram sua profissão. Absolutamente todos
estão sempre a postos, com vontade real de ajudar as pessoas. Dos médicos aos
responsáveis pela limpeza.
Ou seja, o que vi foi um hospital com seres humanos. Para
mim é óbvio que não podemos apenas saudar o sistema público de saúde. Ali o
clime que está no ar é daqueles de gente que se desdobra para fazer o melhor.
Fiquei tocado pela história de vida de uma das enfermeiras.
Por sinal, uma enfermeira excelente: ela teve um filho com um grave problema. O
menino tinha epilepsia. Daí, ela fez o curso de técnico em enfermagem para
aprender a cuidar do próprio filho. Com o curso na mão, decidiu que essa
deveria ser a sua profissão. Saiu da indústria onde trabalhava para ajudar a
cuidar das pessoas. Qual é o preço disso?
Daí, voltando à senhora voluntária, com os papeluchos da
pesquisa em mãos, ao lado da minha mão, comecei a responder as questões.
"Ótimo. Tudo ótimo. Não, desculpe. Não é ótimo, é excelente". Ao
invés dela continuar a fazer as questões, eu a "atropelei" e disparei
em perguntas. Uma delas: Como eles conseguiam fazer uma Santa Casa tão boa?
Pelo que entendi, a Santa Casa de Pirassununga depende
enormemente do SUS e, não somente, de uma grande mobilização da sociedade. Os
voluntários que trabalham nas coisas simples, podem ajudar muito os enfermos em
seu cotidiano. Eles costuram as roupas de cama, compram os cobertores, fazem
pequenos ajustes e reformas no hospital.
Além disso, para levantar recursos para esses trabalhos,
promovem festas, barraquinhas, pizzas solidárias e praticam todas as ideias que
um grupo de pessoas focadas em fazer o bem podem praticar.
No fim das contas, aprendi uma coisa que de outra forma não
aprenderia. Não adianta falar mal do SUS nas redes sociais . Não adianta
reclamar de tudo e não fazer nada, por ninguém. Não adianta nada bater panelas
diante da televisão enquanto milhares de pessoas trabalham, de fato por dias
melhores, para si e para os outros.
Naquele lugar, no hospital, essas pessoas põem a mão na
massa. E isso tem um efeito complexo sobre elas. Todos veem o quanto o esforço
é recompensado, todos percebem que nada está abandonado.
E se você adicionar a isso um monte de gente desejando fazer
as coisas corretamente, a fiscalização sobre possíveis chupins e aqueles
corruptos de sempre, fica maior e mais eficaz. Garanto que se alguém aparecer
com más intenções, não vai durar muito por lá.
Diante do exemplo que vi, sugiro às outras Santas Casas que
procurem aprender com os métodos e com a gestão desta de Pirassununga. É
preciso apreender e manter a energia positiva que vi ali, naquela Santa Casa do
interior paulista.
Várias pessoas da minha família já foram muito bem atendidas
em hospitais públicos. Isso não era grande novidade para mim. Minha mãe recebeu
por 5 anos um remédio para o câncer na mama, medicamento que custava mais de R$
500 por mês. Meu tio, irmão dela, passou por diversas cirurgias no Hospital de
Clínicas, em São Paulo, também por causa de câncer. Uma prima fez diversos
tratamentos no AC Camargo. Todos me deram ótimos exemplos.
Mas uma coisa sempre me encafifou. Por uma razão, talvez
humana, as pessoas gostam de contar algum tipo de vantagem. Sempre parecia que
aquilo não era para todos, parece que era sempre para eles, sempre contaram
histórias de como, por algum tipo de influência, conseguiram ser atendidos
desviando de barreiras como filas longas e procedimentos demorados. Pareciam
acessar os serviços bons por terem alguém do outro lado do balcão. Ou conheciam
algum médico, ou conheciam alguém que conheciam alguém. Ou foram indicados para
ir para esses hospitais por alguém muito influente.
Eu nunca consegui imaginar como é que poderia funcionar,
dentro de qualquer desses grandes hospitais, uma central de
"influências". Algo como "atenda esse, é indicação do Dr.
fulano".
E o pensamento voa: "Será que fui bem atendido só
porque cheguei de ambulância da Força Aérea?
Mas, de onde veio então influência do repositor de
supermercado, do pintor, e do marceneiro que estavam no meu quarto? E de onde
veio a influência do servente de pedreiro, que depois, inclusive, me confessou,
que numa bobagem aos 18 anos, passou um pouco mais de um ano atrás das grades.
O ex-presidiário teve um atendimento tão bom quanto o meu, teve a mesma atenção
dos médicos e enfermeiras. Do início ao fim da internação.
E, pasmem! Essas pessoas não fazem nem parte da mesma classe
social dos diretores e médicos que ali trabalham.
Minha conclusão, depois de vivenciar o SUS, foi de que esse
hobby nacional é uma bobagem. Uma tremenda asneira, parece até coisa de quem
não tem o que fazer. Dá vontade de dizer às pessoas que vociferam contra o SUS:
"Reclamem menos e metam a mão na massa!".
E o SUS é ótimo, sim.
* Filipe Rafaeli é designer e piloto privado e de acrobacia
aérea. Trabalhou no Estadão, entre outros veículos de comunicação.
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