Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
A recente divulgação de que o senador Aécio Neves (PSDB-MG)
viajou 124 vezes ao Rio de Janeiro durante seus dois mandatos de governador de
Minas Gerais, preferencialmente nos fins de semana, não deveria causar
estranheza. Afinal, ele sempre foi personagem habitual de colunas sociais e
policiais (quando se recusou ao exame do bafômetro ao ser parado numa blitz)
cariocas. Ir muito ao Rio de Janeiro pode ser sinal de bom gosto – o que é
problema do ex-governador –, mas também de usurpação de recursos públicos – o
que diz respeito a todos que pagam a conta.
Como nos ensina Guimarães Rosa em outro registro, o
importante não é o destino, mas a travessia. No caso de Aécio, há menos
metafísica e mais esperteza. Ele chegava ao Rio e outras praias cotadas a bordo
do jato do Governo de Minas. Mesmo que a legislação tenha brechas (como um
evocativo “questões de segurança”), não há nada que explique eticamente o uso
particular de um avião público, de forma tão repetida e sistemática, para mero
exercício das tribulações do lazer. O valor gasto não foi ainda apresentado,
mas dá para estimar, levando-se em consideração o alto custo de utilização,
manutenção e operação de aeronaves no país. Resumo da ópera: benefícios
privados, gastos públicos. Patrimonialismo puro e simples.
O mais curioso do caso, noticiado em primeira mão pela Folha
de S. Paulo e depois repercutido em toda a imprensa nacional – com exceção de
alguns jornais mineiros que se esforçaram para anistiar no dia seguinte o
malfeito que não noticiaram na véspera –, foi o simbolismo renitente do
transporte aéreo no país. Nos últimos tempos, avião e aeroporto deixaram de ser
meios de transporte e espaços de pouso e decolagem para ganhar uma dimensão
mitológica. Eles são mais que aparentam, carregam um discurso em sua aparente
materialidade. Não são feitos só de aço e concreto, mas de linguagem. A âncora
da distinção social brasileira já teve como instrumentos a roupa, o carro, a
vaga na universidade, a Disneylândia e outras baranguices. Hoje, voa pelos ares
e taxia entre fingers.
Quem não se lembra do icônico “os aeroportos estão parecendo
rodoviárias”? Ou da construção do aeródromo que dá acesso à Versalhes mineira
da família Neves, em Cláudio, interior de Minas, erigido na fazenda de um tio
do senador que mantinha a chave na algibeira? Ou das centenas de quilos de
pasta de cocaína pura transportada em helicóptero pertencente à família
Perrela, que não teve sua origem investigada como se faz no caso da posse de um
baseado no bolso de um jovem negro de periferia? Em mais uma parceria público
privada, o piloto do helicóptero era funcionário do gabinete do deputado
Gustavo Perrella (Solidariedade-MG), filho do senador Zezé Perrella (PDT-MG).
Para não falar do ataque recente de uma horda fascista a João Pedro Stédile, no
aeroporto de Fortaleza, como se o dirigente do MST tivesse invadido um
minifúndio de exclusão garantida pelo direito consuetudinário de classe.
Em todos esses casos, o que parece se afirmar é uma nova
fronteira social. A elite ou burguesia (o nome tanto faz, o que interessa é o
comportamento) levou ao pé da letra a ideia de escala social. Incapaz de
metaforizar, entendeu que subir no gradiente de classes se traduz em alcançar
os céus. Quanto mais alto, melhor. Por isso a defesa tão iracunda dos
aeroportos e aeronaves. Não basta ter, é preciso que o outro não tenha. Não se
trata de medo ou inveja, mas de ressentimento.
Se, até então, no barro do chão, era preciso demarcar
limites com seguranças quase caricaturais em seus trajes MIBs, áreas vips
controladas por trancelins e elevadores privativos, nas alturas era possível
relaxar. Os pobres estavam longe e, significativamente, abaixo. Hoje, o
preconceito está no ar. É claro que, no caso de Aécio, não se trata apenas de
voar – ele tem dinheiro suficiente para comprar quantas passagens quiser – seu
problema maior é ter de compartilhar suas viagens com pessoas comuns, enfrentar
filas e seguir horários. Não é uma distinção pelo meio de transporte, mas pela
exclusividade da solidão e pela realização patrocinada das artimanhas do
desejo.
Ser melhor é ser sozinho na triste composição
moral de uma fatia da sociedade integrada por gente que não gosta de gente. Se
este era o intento caprichoso ou a vocação moral do ex-governador, que pelo
menos pagasse a
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