Foi recorrendo a
taxas excepcionais sobre os mais ricos que as grandes dívidas públicas do
período pós-guerra foram extintas – e que o pacto social e produtivo das
décadas seguintes foi reconstruído
por Thomas Piketty
Publicado 16/10/2020 19:43 | Editado 16/10/2020 20:28
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Como os Estados
enfrentarão o acúmulo de dívidas geradas pela crise da Covid-19? Muitos já
ouvem a resposta: os bancos centrais assumirão em seus balanços uma parcela
crescente das dívidas, e tudo será resolvido. Na verdade, as coisas são mais
complexas. O dinheiro faz parte da solução, mas não será suficiente. Mais cedo
ou mais tarde, os mais ricos deverão dar sua contribuição.
Recapitulemos. A
criação de dinheiro tomou proporções sem precedentes em 2020. O balanço do
Federal Reserve saltou de US$ 4,159 trilhões em 24 de fevereiro para US$ 7,056
trilhões em 28 de setembro, perto de US$ 3 trilhões de injeção monetária em
sete meses, o que jamais foi visto. O balanço do Eurossistema (a rede de bancos
centrais dirigida pelo Banco Central Europeu, BCE) passou de 4,692 trilhões de
euros em 28 de fevereiro para 6,705 trilhões em 2 de outubro, uma alta de 2
trilhões.
Em relação ao PIB
da zona do euro, o balanço do Eurossistema, que já tinha passado de 10% para
40% do PIB entre 2008 e 2018, saltou para perto de 60% entre fevereiro e
outubro de 2020.
Para que todo este
dinheiro? Em tempos normais, os bancos centrais contentam-se em conceder
empréstimos de curto prazo a fim de garantir a liquidez do sistema. Como as
entradas e saídas de dinheiro nos diferentes bancos privados nunca se
equilibram exatamente a cada dia, os bancos centrais emprestam por alguns dias
somas que os estabelecimentos reembolsam depois.
Após a crise de
2008, os bancos centrais começaram a emprestar dinheiro com prazos cada vez
mais longos (algumas semanas, depois alguns meses, ou mesmo vários anos) a fim
de tranquilizar os atores financeiros, paralisados com a ideia de seus
parceiros de jogo irem à falência. E havia muito o que fazer, pois, na falta de
regulação adequada, o jogo financeiro tornou-se um gigantesco cassino
planetário ao longo das últimas décadas.
Todos começaram a
emprestar e tomar emprestado numa escala sem precedentes, se bem que o total de
ativos e passivos financeiros privados detidos pelos bancos, empresas e
famílias ultrapassa hoje 1.000% do PIB nos países ricos (inclusive sem incluir
os derivativos), contra 200% nos anos 1970. O patrimônio real (isto é, o valor
líquido dos imóveis e das empresas) também aumentou, passando de 300% para 500%
do PIB, mas bem menos intensamente, o que ilustra a financeirização da
economia. De certa forma, os balanços dos bancos centrais apenas seguiram (com
atraso) a explosão dos balanços privados, a fim de preservar sua capacidade de
ação diante dos mercados.
O novo ativismo dos
bancos centrais permitiu-lhes igualmente recomprar uma parte crescente dos
títulos da dívida pública, enquanto reduz as taxas de juros para zero. O BCE já
detinha 20% da dívida pública da zona do euro no início de 2020, e poderia
possuir perto de 30% daqui até o final do ano. Uma evolução similar ocorre nos
Estados Unidos.
Como é pouco
provável que o BCE ou o Fed decidam um dia remeter estes títulos aos mercados
ou exigir o reembolso deles, poderíamos desde agora decidir não mais
contabilizá-los no total das dívidas públicas. Se desejamos inscrever esta
garantia no mármore jurídico, o que seria preferível, então isto arriscaria
levar um pouco mais de tempo e de debates.
A questão mais
importante é a seguinte: devemos continuar neste caminho, e podemos considerar
que os bancos centrais detenham no futuro 50% e depois 100% das dívidas
públicas, aliviando ainda mais a carga financeira dos Estados? De um ponto de
vista técnico, isto não representaria problema algum. A dificuldade é que,
resolvendo a questão das dívidas públicas com uma mão, esta política cria
outras dificuldades a mais, especialmente em matéria de crescimento das
desigualdades de riquezas.
Na verdade, a orgia
da criação monetária e de compra de títulos financeiros leva ao aumento dos
preços das ações e imóveis, o que contribui para enriquecer os mais ricos. Para
os pequenos poupadores, as taxas de juros nulas ou negativas não são
necessariamente uma boa notícia. Mas, para os que possuem meios de emprestar a
baixas taxas e que dispõem de competência financeira, legal e fiscal permitindo
encontrar os investimentos corretos, é possível obter excelentes rendimentos.
Segundo a
revista Challenges, as 500 maiores fortunas francesas passaram de
210 a 730 bilhões de euros entre 2010 e 2020 (de 10% para 30% do PIB). Uma tal
evolução é social e politicamente insustentável.
Seria diferente se
a criação monetária, no lugar de alimentar a bolha financeira, fosse mobilizada
para financiar um verdadeiro impulso social e ecológico, isto é, assumindo uma
forte criação de empregos e aumentos salariais nos hospitais, nas escolas, na
renovação térmica, nos serviços locais. Isto permitiria aliviar a dívida ao
mesmo tempo em que se reduzem as desigualdades, investindo nos setores úteis
para o futuro e deslocando a inflação dos preços dos ativos para os salários e
para os bens e serviços.
Para tanto, não
seria o caso de uma solução milagrosa. Assim que a inflação retornasse
novamente a níveis substanciais (de 3% a 4% ao ano), seria necessário atenuar a
criação monetária e regressar à arma fiscal. Toda a história das dívidas
públicas mostra: o dinheiro sozinho não pode oferecer uma solução pacífica para
um problema desta magnitude, pois, de um modo ou de outro, envolve consequências
distributivas descontroladas.
Foi recorrendo a
taxas excepcionais sobre os mais ricos que as grandes dívidas públicas do
período pós-guerra foram extintas – e que o pacto social e produtivo das
décadas seguintes foi reconstruído. Vamos apostar que o mesmo se passará no
futuro.
Fonte: Le Monde
Diplomatique | Tradução: A Terra é Redonda, via OutrasPalavras
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