A lição de que o
obscurantismo anda sempre de mãos dadas com a tragédia humanitária nunca foi
tão pedagógica quanto nesta pandemia
por Coalizão Ciência e
Sociedade
Foto: Globo.com
26/12/2020 16:09 | Editado 26/12/2020 18:23É perfeitamente possível negar a ciência sem sentir os efeitos imediatos de tal ato. Afinal, a conta do aquecimento global, da exposição crônica a agrotóxicos e do tabagismo não costuma chegar no dia seguinte. Assim, por um certo tempo e irreflexivamente, pode-se até mesmo aceitar que a ciência tenha pouca relevância para o decurso das nossas vidas. Entretanto, a atual emergência sanitária da Covid-19 prova o contrário: onde falta ciência, sobra retrocesso e os efeitos aparecem no dia seguinte.
Quando a
polarização política e a ideologização dão as cartas nas estratégias de
enfrentamento de uma crise sanitária grave como esta, abrem-se oportunidades
perigosas para o fluxo de informações equivocadas e, sobretudo, para a
conformação de atitudes e ações que acentuam as graves consequências da
pandemia, ao invés de amenizá-la.
Uma breve
retrospectiva do trágico ano de 2020 ilustra bem os percalços ocasionados pela
negação da ciência, pelas fragilidades na educação científica e pelas disputas
político-partidárias entre diferentes níveis hierárquicos do governo.
Em meados de março,
ante uma pandemia que já se anunciava avassaladora em modelos epidemiológicos –
ainda que com algum grau compreensível de imprecisão, dada a incerteza de dados
e cenários –, delineou-se uma evidente cisão mundial.
Medidas de
isolamento social
De um lado,
governos que primam pela ciência e pelo conhecimento se renderam aos fatos e
implementaram medidas paliativas contra a disseminação da pandemia. Essas ações
foram orquestradas pelas autoridades médicas, sanitárias e científicas, com
especial atenção para a comunicação de riscos em situação de emergências,
reconhecida pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos
principais pilares de respostas às pandemias.
De outro lado,
governos resistentes ou alheios aos avanços do conhecimento seguiram seus
instintos particulares, negando ou minimizando a crise, como se pudessem domar
o novo coronavírus pela bravata, com divulgação de informações contraditórias e
promoção de embates e disputas entre instâncias decisórias, resultando na falta
de coordenação adequada das ações.
A imprudência no
combate precoce da pandemia custou caro. Medidas de isolamento social, que se
mostraram tão importantes na mitigação da circulação do vírus em todo o mundo,
deram fôlego aos sistemas de saúde para receberem uma multidão de doentes. No
entanto, essas medidas não só deixaram de serem implementadas em muitos locais
do país, como foram rechaçadas pelo governo federal, que clamava por imediata
abertura econômica, enquanto o contágio pelo vírus se descontrolava e vitimava
a população, especialmente a parcela mais social e economicamente vulnerável.
Negação da ciência
O discurso do
governo federal se baseia na falsa dicotomia entre saúde e economia. Enquanto
isso, a comunidade científica, por meio de estudos, análises e projeções,
trazia à luz evidências de que a retração econômica não se devia ao isolamento
social por si, mas à incapacidade de controle da pandemia.
A equivocada aposta
do governo federal na hidroxicloroquina como o elixir da pandemia não
retrocedeu nem mesmo ante à clareza de evidências provenientes de diversos
estudos bem controlados – alguns conduzidos, inclusive, por cientistas
brasileiros – que demonstraram a ineficácia desse medicamento na Covid-19
(profilática ou tardiamente). A negação da ciência, adotada como política de
estado, primou pelas falhas na coordenação dos sistemas nacional, estaduais e
municipais de saúde, mesmo diante da aterradora perda de mais de 181 mil
brasileiros, números atualizados até a conclusão deste artigo.
Na lamentável
ausência de tratamentos ou vacinas eficazes, restavam as medidas preventivas
não-farmacológicas: distanciamento social, higienização e uso de máscaras.
Simples? Não para quem governa de costas para a ciência, desprezando os riscos
da pandemia.
Afora a malograda
campanha nacional em prol da hidroxicloroquina, não vimos sequer uma grande
ação coordenada em nível federal com vistas ao combate da doença. Ao contrário,
a má gestão atingiu também questões de logística na distribuição de testes
diagnósticos que estão a expirar, e que poderiam ter auxiliado a melhor
entender o espalhamento e a distribuição geográfica da doença, facilitando seu
enfrentamento.
Financiamentos
cortados
Durante a pandemia,
a ciência brasileira recebeu recursos minguados. Estudos epidemiológicos
tiveram seus financiamentos cortados. Os principais centros de pesquisa e
universidades – locais onde as possíveis soluções para a crise sanitária são
geradas – continuaram a sofrer com reduções orçamentárias, que resultaram em
comprometimento da infraestrutura essencial e do financiamento dos recursos
humanos especializados.
Não obstante a
redução do financiamento à ciência, é da ciência que deverá surgir o respiro
contra a pandemia. Os primeiros ensaios clínicos de fase 3 – com ativa
participação de cientistas e instituições brasileiras – têm gerado resultados
que sugerem a proximidade de uma ou mais vacinas eficazes para a Covid-19. É interessante
notar que mesmo em um período de parcos recursos para pesquisa, a ciência
brasileira está entre as que mais publicaram estudos sobre a Covid-19: das
168.546 publicações científicas relacionadas à doença publicadas em todo o
mundo, 4.029 são assinadas por pesquisadores que trabalham no Brasil, de acordo
um levantamento realizado pela Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica.
Isso coloca o país na 11ª posição no ranking mundial sobre o tema, à frente
mesmo de alguns países desenvolvidos.
Em relação ao
futuro, enquanto o Brasil vive um aumento dos casos de Covid-19, é crucial
enfrentar o discurso contrário à vacinação alicerçado em informações falsas e
preconceituosas. A sociedade brasileira necessita de planos transparentes e bem
fundamentados para garantir uma estrutura logística que permita a ampla
vacinação de toda a população, dando prioridade inicialmente à mais
desfavorecida socioeconomicamente. Decerto, permanece o desafio de
fortalecimento da saúde pública e dos sistemas de vigilância para enfrentamento
de novas doenças infecciosas que devem surgir e se expandir com velocidade cada
vez maior, considerando a rápida expansão das ações humanas que levam à
degradação ambiental.
Tragédia
humanitária
O ano de 2020
deixou tristezas e perdas, mas os ensinamentos deste período não devem ser
ignorados. A lição de que o obscurantismo anda sempre de mãos dadas com a
tragédia humanitária nunca foi tão pedagógica quanto nesta pandemia. Caberá à
história responsabilizar aqueles que escamotearam a ciência e a saúde de um
país em nome de convicções e interesses pessoais, para que os erros jamais se
repitam.
Os impactos
negativos da crise sanitária alcançaram a saúde física e mental, o emprego e
segurança alimentar, a educação, o comportamento e a qualidade de vida dos
brasileiros. Grupos minoritários e socialmente vulneráveis foram
assimetricamente atingidos pela pandemia. O retrocesso social deverá ser
sentido por décadas, pondo em risco toda uma geração. É impossível vislumbrar
qualquer saída para uma crise dessa monta que não passe pela política pública
responsável e devidamente informada pelo conhecimento científico.
A Coalizão Ciência
e Sociedade congrega cientistas de instituições ensino e pesquisa em todas as
regiões do Brasil.
Fonte: Direto da Ciência
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