Militante do
Partido Comunista do Brasil (PCdoB) desde a década de 1970, deixa uma vasta
obra, um legado e um exemplo de vida singulares.
Publicado 02/02/2021 19:36 | Editado 02/02/2021 19:57
Morreu José Carlos
Ruy. Dele ficou um dos mais profícuos acervos de tradução do conhecimento
marxista e progressista, em suas múltiplas facetas, com ênfase na história do
Brasil e do povo brasileiro. Um infarto fulminante tirou-lhe a vida, aos 70
anos de idade. Jornalista, escritor e historiador, iniciou-se no mundo da
escrita em meados da década de 1970, no Centro Pastoral Vergueiro, ligado à
Igreja Católica, na cidade de São Paulo. Era um centro de pesquisa e
documentação do movimento popular e sua função consistia em guardar, de forma
organizada, os recortes de jornais.
Logo foi convidado
para trabalhar no jornal Movimento, semanário da imprensa
alternativa que circulou no Brasil entre os anos de 1975 e 1981. Com o
fechamento do jornal, foi para a Editora Abril, exercendo várias funções no
Departamento de Documentação (Dedoc). Em 1987, ingressou no Retrato do
Brasil, coleção de fascículos sobre a história recente do Brasil,
coordenada pelo jornalista Raimundo Pereira.
Andou um pouco pelo
mercado, como ele mesmo disse, foi para a Editora Globo, quando coordenou a
mudança para São Paulo e a reorganização na cidade do Centro de Documentação
(Cedoc), e voltou ao Dedoc da Editora Abril. “É um trabalho para quem gosta.
Ele une, penso, qualidades do jornalista, do historiador e do documentarista”,
afirmou ao relatar sua experiência para uma revista da Universidade de São Paulo
(USP).
O mundo do
jornalismo encantava Ruy. “Quem prefere as luzes da ribalta certamente se
sentiria infeliz nesta função – e sairá dela rapidamente, procurando um lugar
nas redações. Os melhores levarão consigo o aprendizado do arquivo, do contato
com a informação organizada e sistematizada. Serão então jornalistas de
excelente qualidade. São aqueles que, antes de sair para uma reportagem, para
uma entrevista, para uma sessão de fotos, procuram saber o que já existe a
respeito de suas pautas”, afirmou.
Moldado por essa
experiência, Ruy ingressou no jornalismo do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), do qual era militante desde 1972, e formalizaria sua filiação na
década de 1990, por estar impedido, até então, pelo seu vínculo empregatício
com a Editora Abril. “Quando Rogério Lustosa morreu, em 1992, Olival Freire
passou a ser o editor, com a colaboração ativa do jornalista Pedro de Oliveira.
A gente fechava a (revista) Princípios num verdadeiro mutirão. As
reuniões de pauta envolviam Pedro de Oliveira, Edvar Bonotto e eu. De longe,
quem coordenava era João Amazonas”, lembrou Ruy para uma matéria sobre os 30 anos da revista, de autoria de
Osvaldo Bertolino.
Ruy foi editor
também do jornal do PCdoB A Classe
Operária e membro do Conselho Editorial da revista Debate Sindical, publicada pelo Centro de Estudos Sociais (CES).
Ao comentar sua experiência para uma matéria da Assessoria de Comunicação do
Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), disse: “Seu jornalismo (d’A Classe Operária) se distingue justamente
pela consciência dessas imposições de classe, que é um dos pressupostos do
jornalismo comunista que se desenvolve em torno de três balizas principais: a
política do Partido; o programa do Partido; e a filosofia do Partido, que é o
marxismo-leninismo.”
Sua experiência no
jornalismo digital também foi pioneira. Quando o Portal Vermelho foi
inaugurado, em 25 de março de 2002 – aniversário do PCdoB, fundado em 1922, e
d’A Classe Operária, surgida em 1925 –, ele
imediatamente passou a integrar o seu corpo de jornalistas. Ao mesmo tempo,
seguiu publicando artigos e ensaios na revista Princípios,
além de integrar a Escola Nacional do Partido (hoje, Escola
João Amazonas) e a União de Negros pela Igualdade (Unegro). Quando
surgiu a Fundação Maurício Grabois, em 2008, passou a integrar a sua direção
como diretor de publicações. Atuou no Instituto Brasileiro de Estudos
Africanistas (IBEA), dirigido por Clóvis Moura, nos anos 1970, e integrou o
Comitê Central do PCdoB entre 1997 e 2009 e 2013 e 2017.
Ruy comandou a
publicação de importantes livros pela editora Anita Garibaldi, em parceria com
a Fundação
Maurício Grabois, além de escrever suas próprias obras. Coordenou,
com o historiador Augusto Buonicore, a coletânea de artigosContribuição à história do Partido Comunista do Brasil,
além de escrever a monumental obra Os comunistas na Constituinte de 1946 e
a seminal Biografia da nação. Na coletânea 100 anos da Revolução Russa,
escreveu o denso e original artigo A Revolução de 1917 e a luta contra
o racismo. Deixou, inéditos, entre outros, dois trabalhos: um sobre a obra
de Machado de Assis e outro sobre a luta antirracista.
Na apresentação do
livro A mais longa duração da juventude, do
escritor Urariano Mota, Ruy escreveu: “Um dia desses, conversando com minha
filha, uma moça de 21 anos que estuda Letras, ela me falava, contrariada, de
tantas moças e rapazes (e movimentos e artistas ‘jovens’) que parecem
envelhecidos pela recusa a correr riscos, e pela vontade de ter todas as
garantias e segurança que a sociedade oferece. São jovens na idade, mas não no
coração, dizia ela.”
Mais adiante, disse
sobre os sonhos da juventude que enfrentou a ditadura militar, descritos na
obra de Urariano Mota: “Sonho que levou o garoto de 1969 a comprar um disco de
Ella Fitzgerald onde poderia ouvir I wonderwhy, se tivesse vitrola (palavra
antiga para toca-discos, também antiquada no tempo dos igualmente em superação
cdplayers). Não importa que não tivesse! Teria, um dia, e ouviria a cantora
cuja voz amava. Sonho semelhante ao que tantos anos depois, quando já não
existia a ameaça da repressão ditatorial, queria uma bandeira do Partido
Comunista do Brasil para envolver o caixão do amigo morto. Sonho de abnegação,
igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens
materiais e construção de um mundo novo, socialista.”
Ruy foi a expressão
desses sonhos. Síntese do militante comunista, exerceu, com rigor, o que
aprendera ao descrever os libertários brasileiros, os teóricos do mundo com
justiça social, os lutadores por mudanças na realidade concreta. “O jornalista
é o historiador do cotidiano. E, como os historiadores, que se reportam ao
passado e o reconstroem com base em documentos de todo tipo, o jornalista faz
um recorte do presente, destacando, selecionando e descrevendo os
acontecimentos”, disse certa vez.
Quando o grande
poeta uruguaio Mario Benedetti “deixou de viver”, Ruy escreveu no Portal Vermelho que
suas obras integravam a “mais elevada expressão do sentimento humano nesta
parte do mundo e que registram a crença, como ele dizia, ‘na vida e no amor, na
ética e em todas essas coisas tão fora de moda’”. Na morte de Eduardo Galeano, escreveu: “Quem o
conheceu não esquece a fineza no trato, a atenção e a gentileza que
caracterizaram este homem de letras que se sentia em casa nas cidades de nossa
terra. Um homem que sonhou com a liberdade, a igualdade, a solidariedade entre
os povos do mundo e, em seus escritos, foi uma voz sensível e poderosa da gente
que vive aqui.”
Ruy lembrou que
Galeano fez da memória sua ferramenta constante. “A memória tem mãos”, dissera
em uma entrevista ao jornal Brasil de Fato. Em outra ocasião,
assegurou que a “memória guardará o que valer a pena”. “Foi com as mãos da
memória que escreveu os quase quarenta livros que publicou desde 1963”, disse
Ruy. “No futuro, quando as injustiças e contradições contra as quais lutou
estiverem superadas, permanecerão como testemunhos de dignidade e resistência”,
registrou.
Foi jornalista,
escritor e historiador comunista em tempo integral. E, como tal, de um
humanismo que não cabia em si. Era preciso expressá-lo cotidianamente, em todos
os lugares. Que se diga para ele o que dissera sobre Mário Benedetti e Eduardo
Galeano. A propósito, o título do seu texto sobre Beneddeti é: Lá se
vai Benedetti, boa praça, boa gente. Adeus, Ruy! Boa praça, boa gente! Até
sempre!
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