Sociedade precisa se desintoxicar do ódio, analisa Christian Dunker
Psicanalista e professor da USP aponta que discurso
de ódio estimulado pelo bolsonarismo está na base de graves problemas, como a
violência nas escolas, e precisa ser superado
Publicado 28/04/2023 09:30 | Editado 28/04/2023
09:46
Christian Dunker fala sobre discurso de ódio,
bolsonarismo e ataques às escolas. Foto: divulgação
O período pós-Bolsonaro impõe ao Brasil desafios
que se estendem desde questões objetivas — como a destruição de estruturas e
políticas públicas e da morte de milhares de pessoas por Covid decorrentes de
uma série de ações e omissões — até aspectos subjetivos — como o discurso de
ódio, algo presente na sociedade, que se espraia e contamina as mais variadas
esferas da vida pública e privada e cujas consequências, embora sejam claras,
são de difícil mensuração.
Uma das facetas mais graves deste cenário são os
ataques às escolas, que cresceram
sensivelmente nos últimos anos, fruto de um caldo formado por esse
ambiente e potencializado pelos mecanismos de funcionamento das redes sociais.
Em meio a tanta brutalidade, o Ministério dos
Direitos Humanos criou um grupo de trabalho no começo do ano para se dedicar ao
estudo do discurso de ódio, a fim de elaborar políticas capazes de mitigá-lo. E
após os mais recentes ataques que levaram à morte de uma professora em São
Paulo e de quatro crianças em Blumenau (SC), um grupo de trabalho
interministerial, comandado pela pasta da Educação, também foi instituído para
discutir ações de longo prazo. Além disso, medidas
emergenciais e imediatas foram tomadas no âmbito do Ministério
da Justiça e Segurança Pública.
Um dos membros do grupo de trabalho sobre o
discurso de ódio é o psicanalista Christian Dunker, professor do Departamento
de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e
Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo). Ao portal Vermelho, ele
explicou que, no contexto atual, o ódio não é o afeto primário. “O afeto
primário é o medo. Primeiro, você cria o medo e a vergonha de sentir-se
isolado, de não se sentir pertencendo a um grupo e em seguida vem o ódio em
cima”, disse.
O sentimento, que permeia a sociedade como um todo,
rebate fortemente entre os mais jovens que, via de regra, são mais vulneráveis
à influência das redes e à necessidade de aceitação, seja daqueles com quem
dividem o cotidiano, seja em grupos de gamers ou fóruns
presentes na internet ou na deep web.
“O que vem acontecendo é que essa experiência
própria da adolescência — da gente se sentir estranho no corpo, no grupo, na
família — está sendo acolhida por grupos de intencionalidade radicalizadora,
grupos que vão transformar e capitalizar esse sentimento de injustiça em ódio
orientado para uma ação não pacífica. Isso é completamente novo”, aponta Dunker.
Ele destacou ainda que esse processo de ataques às
instituições de ensino tem a ver, também, “com a demonização, a suspeita com
relação às escolas e universidades por parte do último governo”.
Para superar o problema, ele chama atenção para a
necessidade de oferecer caminhos que passem pela educação — inclusive para o
uso da internet — e pelos cuidados com a saúde mental, além da importância de o
país ser desintoxicado de todo o discurso fascista que, apesar dos novos ares
vindos com a eleição de Lula, ainda está presente no tecido social, bastante
esgarçado nos últimos anos.
Leia abaixo os principais trechos dessa
conversa.
Discurso de ódio e violência nas escolas
“Para enfrentar esse problema, é preciso elencar
uma série de medidas e atitudes porque esse tipo de fenômeno é de determinação
sistêmica (…) e demorou um tempo para se formar, dependeu de certas injunções
políticas, de circunstâncias que passam, inclusive, pela Covid, pelo aumento do
uso da linguagem digital associado à experiência escolar etc. Agora, temos um
processo que não conseguimos colocar de volta na caixinha, vai demorar muito
tempo para ele ser revertido. Mas há algumas coisas que podem ser
feitas”.
Ódio às escolas, bullying e
instrumentalização dos sentimentos
Ato homenageia professora morta em São Paulo e pede
fim da violência nas escolas. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
“Em primeiro lugar, a gente precisa discutir porque
se gerou, neste país, um ódio às escolas, o que me parece ser um pouco
diferente do processo norte-americano, onde já vinham acontecendo casos deste
tipo, talvez por outros motivos. Em segundo lugar, perceber que em boa
parte desses casos a gente tem processos de exclusão, segregação,
discriminação, maus tratos, infortúnios que acompanham a vida escolar desde
sempre. Por exemplo, aquela pessoa que sofreu bullying, que se sentiu
marginalizada, desprestigiada dentro da escola, essa pessoa, historicamente,
encontrava a solução junto a outros amigos que estavam passando por uma
situação semelhante”.
“O que vem acontecendo é que essa experiência
própria da adolescência — da gente se sentir estranho no corpo, no grupo, na
família — está sendo acolhida por grupos de intencionalidade radicalizadora,
grupos que vão transformar e capitalizar esse sentimento de injustiça em ódio
orientado para uma ação não pacífica. Isso é completamente novo.São
instrumentalizações que vão, por exemplo, criar comunidades em que você vai ser
o herói se fizer isso; se não fizer, é uma pessoa a ser humilhada dentro desse
grupo. Então, o que acontece é uma espécie de duplicação do bullying: você
encontra uma comunidade que tem a violência, a crueldade como um valores e
dentro dessa comunidade, a violência vai ser reaplicada se você não der provas,
se você não realizar uma demanda daquele grupo”.
“Esses grupos devem ser monitorados e é preciso um
processo de educação escolar. A insatisfação é canalizada para as práticas
digitais negativas, opondo-se às boas práticas e isso acontece, em parte,
porque nossas escolas estão desguarnecidas para lidar com isso. Nós estamos
começando agora a pensar em como se ensina a usar a internet, como se adverte
de perigos”.
Saúde mental e mediação
“Além disso, a gente precisa de iniciativas no
campo da saúde mental. É possível formar uma espécie de clínica básica de
escuta nas escolas. Eu acompanho iniciativas em escolas em São Paulo de alunos
que querem fazer psicologia, medicina, comunicação e que se organizam para
escutar outros alunos e para prestar atenção em processos de violência, de
racismo, de assédio porque tudo isso concorre para a produção e aceleração de
quadros de transtornos mentais, inclusive a maneira como hoje a gente está
acompanhando esses processos, às vezes exilando-os da escolaridade. Quando
alguém tem um problema desse tipo, encaminham a pessoa para o psicólogo ou
psiquiatra, ela fica em tratamento, mas é como se isso fosse em paralelo com o
processo escolar. Eu acho que está errado e há um atraso legislativo e
institucional nas nossas escolas em relação a esse ponto”.
“A gente fez um processo de inclusão bem-sucedido
nas escolas brasileiras, que hoje têm um nível de diversidade maior do que a
gente tinha há 20 anos, mas nada se fez em termos de mediação, do ponto de
vista de fazer com que as escolas criassem uma cultura onde a diferença fosse
tratada com mediação. Podemos dizer o mesmo das universidades. Os programas de
cotas foram bem-sucedidos. Mas, onde estão os mediadores ou aqueles que,
presumindo que quando aumenta a diversidade, aumenta conflito, vão ajudar a
tratar esses conflitos? Nós não fizemos a nossa lição de casa nessa matéria”.
Demonização de instituições de ensino
“Esse processo tem a ver, também, com a demonização,
a suspeita com relação às escolas e universidades por parte do último governo.
Quando você diz que as universidades são lugares de balbúrdia, quando você diz
que o ‘professor de história é perigoso porque ele doutrina’ ou que a
professora ‘vai apresentar a mamadeira de piroca’ ou vai falar em
questões de gênero, quando você coloca personagens do universo escolar como
inimigos de Estado, isso vai ter uma consequência”.
“Alguns vão ignorar, mas outros vão comprar essa
ideia junto com outro discurso muito pernicioso e que floresceu nos últimos
seis anos que é o discurso do tratamento da violência pela violência. Nos casos
que a gente conhece de ataques a escolas, os garotos, em geral, são brancos, se
sentiam injustiçados, se sentiam objeto de uma violência real ou imaginária. E
como tratavam a violência que sofriam? Com armas e devolvendo essa violência de
forma errática às vezes sobre figuras que tinham um papel meramente
simbólico”.
O medo como gerador do ódio
“O discurso do ‘arme-se’ continua na resposta
social para isso quando a gente fala, em primeiro lugar, em policiar as
escolas, armar professores, colocar detector de metais, isso é a continuação do
veneno no veneno. Você alimenta aquilo que está causando esse processo com mais
violência, com mais câmeras, com mais sentimento de medo porque esse é um ponto
que a gente também discute no grupo de trabalho: o ódio não é o afeto primário.
O afeto primário é o medo. Primeiro, você cria o medo e a vergonha de sentir-se
isolado, de não se sentir pertencendo a um grupo e em seguida vem o ódio em
cima”.
O bolsonarismo e o discurso fascista
“A gente assistiu, durante o governo Bolsonaro, a
emergência de um discurso fascista. O discurso fascista não significa que o
Brasil tenha se tornado um país fascista. Mas se você pensar e adensar a ideia
de discurso, o bolsonarismo é fundamentalmente um discurso. E um discurso se
mede pelo tipo de laço social que ele cria e pelos efeitos que ele impõe.
Então, não é a fala do sujeito, mas o que isso causa em quem participa dessa
fala e se coletiviza a partir dela”.
“É próprio do fascismo o ataque a intelectuais, a
discriminação de raça, gênero e orientações sexuais contra-hegemônicas, os
ataques à arte, a valorização da violência etc. Todos esses critérios a gente
tem — e foram pesquisados, existem teses muito interessantes sobre isso —
no discurso bolsonarista. Então, é muito difícil não pensar no discurso de
ódio, com todos as características que a gente encontra, associado ao discurso
fascista: o uso de certas palavras que funcionam como indexadores de vinculação
das pessoas, o tom de voz, o uso da humilhação, o uso de sub-códigos, a ideia
de que a gente se une contra o inimigo — portanto, a produção sistemática,
encadeada e metódica de inimigos —, tudo isso que a gente encontrou ao longo do
bolsonarismo”.
Desintoxicação da sociedade
“É improvável que esse discurso, que teve 48% de
endosso nas urnas, tenha desaparecido. Discursos não desaparecem assim, a gente
precisa de processos como foi o processo de desnazificação, que incluiu, por
exemplo, localizar as responsabilidades, produzir tribunais, fazer julgamentos
e reformas institucionais, criar leis preventivas, vetar certas práticas. Isso
não aconteceu no Brasil, está acontecendo de forma meio tímida, reticente. O
que a gente pode imaginar? O discurso fascista continua operando, mas aonde que
ele vai estar? Aonde ele vai encontrar materialidade social? A escola se
tornou alvo fácil para isso. E veja: não significa que o aquelas que cometem
esses atentados sejam bolsonaristas no sentido de votarem nele etc. Mas, o
discurso ultrapassa inclusive isso, ele se infiltra nas pessoas para além das
figuras, dos indivíduos, dos heróis que esse discurso patrocina”.
Leia também: Saídas
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