Fakes news e
preconceito contra palestinos
O preconceito contra os palestinos não se desenvolve de maneira
espontânea. Ele é o resultado de um esforço descomunal para vilificá-los
Murilo Seabra/Le Monde Diplomatique
Recentemente, o New York Times tentou reanimar uma notícia que já havia sido desmentida: a de que os membros da brigada Al-Qassam cometeram “estupros em massa” durante a Operação Dilúvio Al-Aqṣā. A matéria é um exemplo de falta de consideração tanto com a verdade quanto com as vítimas e as suas famílias. “Vale a pena discutir o fato de que depois de tantas alegações [sobre o Hamas] feitas pelos israelenses serem desmentidas—de que dezenas de bebês foram decapitados, de que um bebê foi assado no forno, de que um bebê foi arrancado à faca do útero da mãe—, Israel e os seus apoiadores estão agora voltando a apostar fortemente na alegação de que os militantes [da brigada Al-Qassam] cometeram estupros em massa no dia 7 de outubro”, explicou o premiado jornalista Aaron Maté. “Já denunciamos várias inconsistências presentes nessas matérias, só que elas persistem”, continuou Maté, cujo pai é um conhecido sobrevivente do Holocausto. “E, agora, o New York Times apareceu com uma nova matéria (…). A alegação é que o Hamas usou a violência sexual como uma arma de guerra. (…) Mais uma vez, as pessoas estão ignorando as evidências em contrário e as inconsistências dentro desta própria matéria.”
De fato, a matéria estampa
uma falsidade já em seu próprio título: “Gritos sem palavras”
é a mais pura fantasia de uma testemunha ocular que, na verdade, não viu
absolutamente nada. Infelizmente, a matéria do New
York Times está sendo repetida acriticamente pelo mundo afora —pela
australiana News, pela brasileira Folha de São Paulo e,
claro, pela israelense The Times of Israel. Felizmente, ela
foi desmentida pela própria família de Gal Abdush, uma das supostas
vítimas. Mas Aaron Maté e Max Blumenthal — também judeu — já estão
sob ataque. Não é a primeira vez que o New York Times mobiliza
o seu imenso peso na guerra contra a verdade.
Não são apenas blogs obscuros
que mantém as notícias duvidosas sobre o 7 de outubro de 2023
em circulação, mas também poderosos veículos de comunicação
e gigantes da internet como a Meta, proprietária
do Facebook, do Instagram e do WhatsApp. A mídia
corporativa ocidental está amplificando e fortalecendo em uníssono a narrativa
israelense e jogando sujo ao insistir que o Hamas atacou os segmentos
mais vulneráveis, indefesos e frágeis da população. Mas, como grande parte das
notícias são falsas — parte da campanha sionista para justificar o genocídio do
povo palestino — os “bebês”, as “crianças” e as “mulheres” precisam ser
entendidos como símbolos. As palavras que os
denominam possuem uma carga positiva – evocando pureza e inocência – que
torna os supostos crimes do Hamas ainda mais horrendos. “É tão macabro que
ninguém queria revelar [as atrocidades cometidas pela Al-Qassam] até que
tivessem 100% de confirmação”, escreveu a jornalista Margot Haddad.
Aparentemente, as notícias foram 100% confirmadas mesmo sendo falsas—e
as centenas de mortes causadas pelas próprias foças armadas israelenses no
dia 07 de outubro continuam subnoticiadas.
Tudo parece ser cuidadosamente planejado
— e de fato é — para despertar o máximo de animosidade contra os
palestinos. Mas eles não são apenas alvo de alegações falsas. A campanha de
desinformação sionista — que dispõe de fartos recursos — também se
empenha em suprimir toda e qualquer informação verdadeira favorável à causa
palestina. Por exemplo, apenas três dias depois da Operação Dilúvio
Al-Aqṣā, apareceu no The Atlantic um ambicioso artigo
de Bruce Hoffman — professor da Universidade de Georgetown — com
todos os sinais de ter sido escrito por encomenda. Sem nenhuma justificativa,
ele comparou a Carta de Princípios e Políticas Gerais do Hamas
ao infame Minha Luta, livro no qual Hitler disse que estava
realizando a obra de Deus ao lutar contra o judaísmo. É patente a intenção de
utilizar a aura negativa do nazismo para manchar cinicamente a imagem do Hamas.
O problema é que a luta do Hamas não é contra os judeus nem contra
o judaísmo. A luta do Hamas é contra o colonialismo. O truque de
Hoffman consistiu em esconder na manga o verdadeiro programa do Hamas e criar a
ilusão de que anticolonialismo e nazismo são dois lados da mesma
moeda.
Contudo, o que deixa os palestinos
indignados — tanto os palestinos muçulmanos quanto os palestinos
cristãos — não é o fato de que os judeus possuem suas próprias
crenças, mas o fato de que os sionistas — que muitos judeus
acusam de violar os ensinamentos da fé judaica — não têm nenhum pudor
em tomar as suas terras à força e violar os princípios éticos mais elementares,
a começar pelo princípio de respeito à verdade. A diferença entre lutar contra
o judaísmo e lutar contra o colonialismo é enorme e o Hamas se deu o trabalho
de explicá-la. “O Hamas afirma que o seu conflito é com o projeto
sionista, não com os judeus em razão da sua religião”. A luta é contra “os sionistas
que ocupam a Palestina”. Ela é uma luta contra a colonização. Ou
seja, não se trata de um conflito religioso.
Embora a entidade sionista — o Estado
de Israel — seja talvez o mais vergonhoso fóssil vivo da era colonial, não tem
o menor sentido achar que o Hamas combate o judaísmo só porque combate o
colonialismo. Assim como ser antibolsonarista não é ter preconceito ou ódio
contra brasileiros, ser anticolonialista não é ter preconceito ou ódio contra
judeus. As duas coisas não estão inextricavelmente ligadas — a
menos, claro, que se queira instrumentalizar o sofrimento do povo judeu em
favor do sionismo.
Mas o que torna a desonestidade do
professor Hoffman ainda mais alarmante é o fato de que além de não querer
acabar nem com os judeus nem com o judaísmo, o Hamas não quer
acabar nem mesmo com a entidade sionista — ao contrário de
muitos rabinos que a veem como antissemita e como um risco para o
povo judeu. O Hamas está disposto a aceitar “as fronteiras de 4 de junho de
1967”. Portanto, o que ele quer é irrecusável do ponto de vista moral,
indisputável do ponto de vista legal e perfeitamente viável do ponto de vista
prático: o reconhecimento do Estado da Palestina—a solução de dois Estados. Mas
os sionistas estão tentando convencer o mundo inteiro de que é impossível
respeitar os direitos dos palestinos sem exterminar o povo judeu. Assim como os
autores do artigo sobre estupros em massa do New York Times, o
professor Hoffman anunciou a sua guerra à verdade já no título do seu artigo: “Entendendo
a ideologia genocida do Hamas”.
E o que acontece com quem tempera o
debate com um pouco de verdade? As consequências podem ser tão graves quanto as
sofridas pelos intelectuais e jornalistas brasileiros que ousaram criticar
a ditadura — que, por sinal, recebeu apoio das mesmas forças que
apoiam os sionistas. A professora Nurit Peled-Elhanan explicou em uma
entrevista que “Tem uma organização chamada Impact que viaja o mundo
deslegitimando a educação e a imprensa pró-Palestina. Eles fingem ser acadêmicos
(…) e eles ganham muito dinheiro, da UNESCO, do Congresso dos Estados Unidos. O
chefe dessa organização me disse que sua missão de vida é me destruir.”
A carreira do
historiador Theodore Katz subitamente chegou ao fim depois que ele
trouxe à tona os crimes cometidos pelos soldados israelenses contra os
palestinos na famosa vila de Tantura. “Tantura era uma vila rica e tinha casas
lindas. Os seus moradores viviam como europeus, sabe? (…) Um dos soldados
estuprou uma menina de 16 anos. Foram eventos horrendos”, explicou o ex-soldado
israelense Yosef Diamont com um largo sorriso no rosto. Mas os sionistas
decidiram que o verdadeiro crime não foi o massacre. O verdadeiro crime foi
tê-lo tirado do esquecimento — e assim resolveram perseguir e difamar Katz. E
venceram.
O professor Marc Lamont
Hill — que tinha sido contratado como comentarista pela CNN
— também sentiu na pele a força do lobby israelense:
depois de uma fala na Organização das Nações Unidas (ONU) defendendo os
palestinos, ele foi acusado de antissemitismo e a CNN o
demitiu. A jornalista Katie Halper passou por uma experiência
semelhante. “Obviamente, a censura em torno da questão da Palestina é bastante
comum, mas preciso admitir que fiquei surpresa por terem feito isso comigo”,
contou depois de ter sido demitida do The Hill. O que Halper tinha
feito? Ela propôs gravar um segmento sobre a entidade sionista para discutir o
que todo mundo já sabe ou deveria saber: que os palestinos vivem sob um regime
de apartheid.
O especialista na questão
palestina Norman Finkelstein também perdeu o emprego de forma
parecida. Depois de ter demonstrado a falta de seriedade acadêmica de Alan
Dershowitz — sionista apaixonado, plagiador incorrigível e professor da
Universidade de Harvard —, ele foi forçado a abandonar a sua universidade. A
corda arrebentou do lado mais fraco — como frequentemente acontece no ocidente.
Infelizmente, o fato é que a suposta liberdade de expressão protege professores
inescrupulosos como Dershowitz (que espalham informações falsas sem nenhum peso
na consciência), mas não personalidades sérias e comprometidas como Finkelstein
(que são penalizadas por não abrirem mão do rigor intelectual em nome do
projeto sionista israelense).
Avi Shlaim, Ilan
Pappé, Claudine Gay, Zahraa Al-Akhrass, Jinan Chehade, Adania
Shibli, Liz Magill, Rashida Tlaib, Sarah Jama, Fatima
Mohammed, Sidra Tariq, Yara Jamal, Zareena Grewal, Hatem
Bazian, Paul Hadweh, Moath Amarnih, Bassem Youssef, Zaki
Masoud, Anwar El-Ghazi, Michael Eisen, David Velasco, Maha
Dakhil, Emily Wilder, Sophie Hamilton, Ryna
Workman, Alexandria Dunn, Antoinette Lattouf, Jackson
Frank, Miguel Sanchez, Mick Napier, Michael Eisen, Tony
Greenstein, Jeremy Corbyn e Breno Altman também passaram
por situações análogas. Também entraram na mira do lobby sionista
— que tentou até mesmo tirar do Netflix o filme Fahra, que conta a
história real de uma sobrevivente dos massacres realizados por soldados
israelenses na Palestina em 1948.
O livro We will not be
silenced: the academic repression of Israel’s critics (em português, Não
seremos silenciados: a repressão acadêmica aos críticos de Israel) compila
uma série de testemunhos de pesquisadores que foram punidos por falarem a
verdade nos Estados Unidos, o país da “liberdade de expressão”. Nesse clima de
terror intelectual, não surpreende que especialistas no Oriente Médio estejam
se autocensurando. O número de pessoas atacadas — não apenas criticadas,
mas silenciadas à força — é assombroso. É apenas quem limita as suas
fontes de informação à mídia corporativa que acredita haver liberdade de
expressão no mundo ocidental.
[Foto: Mulher e crianças
palestinas com a bandeira na Faixa da Gaza (Michelle Julianne Ratto]
As
cores do tempo https://bit.ly/3Ye45TD
Postado por Luciano Siqueira às 13:48 Nenhum
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