Palestina: história e resistência
“De fato, não parece fácil entender como, perante forças tão claramente
desproporcionais, a resistência pode triunfar.”
Weverton Brito/Vermelho
“Se o adversário que ataca é muito
superior, tanto em efetivos como em potência, só existe um meio para modificar
a relação de forças: esperar o momento em que ele tenha penetrado profundamente
nas bases de apoio e esteja esmagado sob o fardo de todas as dificuldades que o
esperam nessas regiões” (Mao Tse Tung, “Problemas estratégicos da Guerra
Revolucionária na China”, 1936). Diante dos nossos olhos, apesar dos
horrendos crimes cometidos pelo sionismo e do sofrimento inaudito do povo
palestino, estamos assistindo o regime arrogante e poderoso de Israel em pleno
processo de desmoralização, graças ao acúmulo de reveses militares e políticos
que vem colhendo. De fato, não parece fácil entender como, perante forças tão
claramente desproporcionais, a resistência pode triunfar. Acontece que a
história é pródiga em registrar feitos deste tipo. Quando Mao escreveu o artigo
do qual citamos o trecho acima, o Exército Vermelho chinês enfrentava a quinta
campanha de cerco e aniquilamento promovida por Chiang Kai-shek, líder máximo
do Kuomintang. Mao, no texto, fazia um balanço rigoroso da situação. Constatava
que o Kuomintang, beneficiando-se do apoio dos principais países
contrarrevolucionários do mundo “apoderou-se de todas as alavancas de
comando e de todas as posições chave no domínio político e econômico, no
domínio das vias de comunicação e no domínio da cultura, estendendo-se seu
poder ao conjunto da nação”. Enquanto isso, o poder político do Partido
Comunista da China encontrava-se “em regiões montanhosas ou recuadas,
dispersas e isoladas, e não recebe qualquer ajuda exterior”.
A resistência
palestina e as lições da história – II
Em relação ao exército do Kuomintang,
Mao considerava que ele se distinguia “de todos os exércitos que existiram
na China, assemelhando-se, nos seus traços essenciais, aos exércitos dos
Estados modernos. Pelo seu armamento e demais material militar, esse exército
ultrapassa de longe o Exército Vermelho; pelos seus efetivos ultrapassa
qualquer exército conhecido na história da China (…) ele não tem comparação
alguma com o Exército Vermelho”. Quanto ao Exército Vermelho, Mao apontava
que ele não dispunha de bases verdadeiramente sólidas, era “fraco e pequeno”,
pouco numeroso, com homens mal armados com sérios problemas no reabastecimento
de víveres, cobertas, vestuário etc. Sem qualquer medo de soar derrotista, Mao
insistia, citando Lênin, que se deve fazer a análise concreta da situaç&
atilde;o concreta, e a partir desta análise retirar as conclusões pertinentes
para a condução da luta. Assim, de forma genial, o líder chinês chegava à
conclusão de que, mesmo ante tal disparidade de forças, “a guerra
revolucionária na China pode desenvolver-se e triunfar”, decorrendo esta
conclusão das tendências do desenvolvimento mundial e das características
peculiares da revolução chinesa, aliadas ao fato de que o “Exército
Vermelho, mau grado os seus reduzidos efetivos, distingue-se por uma grande
capacidade de combate, pois os seus homens, dirigidos pelo Partido Comunista
(…) lutam por seus próprios interesses (…) comandantes e combatentes estão
politicamente unidos”, enquanto no exército inimigo, “no plano político,
oficiais e soldados estão desunidos”.
A resistência
palestina e as lições da história – III
A realidade do povo chinês das primeiras décadas do século passado guarda
imensa distância com o que enfrenta hoje a Palestina na contenda contra o
apartheid sionista. No entanto, os chineses provaram que é possível vencer
máquinas de opressão incrivelmente poderosas, assim como fizeram russos,
vietnamitas, coreanos, cubanos e sul-africanos, entre outros. No caso
palestino, é cada vez mais indisfarçável que no plano militar Israel não tem
como erradicar a resistência e “aniquilar” o Hamas, o que por si só representa
uma desmoralização sionista e um triunfo palestino. Como consequência, aumentam
as pressões externas e internas contra o governo de extrema-direita de Benjamin
Netanyahu. No último sábado (3), milhares de pessoas saíram às ruas em Israel
não apenas para pedir a destituição do primeiro-mini stro e exigir novas
eleições, mas também para defender um cessar-fogo e denunciar o genocídio do
povo palestino, de acordo com informações do site do Partido Comunista de
Israel, que reporta a realização de manifestações com esse caráter em diversos
pontos do país e na Palestina ocupada. Um dos mais claros sinais que apontam
para a vitória da resistência é que o tema Palestina, antes esquecido e
praticamente abandonado, voltou à pauta internacional e Israel acumula
igualmente sucessivas derrotas no campo político. Antes de falarmos sobre essas
derrotas, é importante salientar o seguinte: o mundo multipolar e a decadência
relativa do imperialismo estadunidense, fatos incontornáveis, não autorizam
qualquer ilusão sobre uma era de paz e justiça, onde os EUA e seus aliados
careceriam de força para tentar impor seus interess es.
A resistência
palestina e as lições da história – IV
A resposta do imperialismo à
emergência do mundo multipolar é elevar as tensões e até mesmo as confrontações
a um ponto que permita retardar ou dificultar a consolidação da nova realidade.
Para isso continua contando com colossal poder financeiro, militar, político,
diplomático, cultural e comunicacional, sendo que particularmente nestes dois
últimos campos ainda desfruta de uma hegemonia confortável. O que o mundo
multipolar permite aos povos oprimidos é travar a luta em novas e melhores
condições, pois lhes dá maior margem de manobra. Subestimar o poder do inimigo
impede de avaliar corretamente os acontecimentos em curso. No último dia 26 de
janeiro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) debateu a denúncia da África do
Sul, apoiada pelo Brasil, acusando Israel de genocídio. Israel apresentou à
Corte um requerimento para que a CIJ rejeitasse in limine a
denúncia da África do Sul. Um dia antes do julgamento
conversei com quase uma dezena de ativistas da causa palestina, incluindo
palestinos natos, e indaguei sobre a expectativa quanto à decisão da Corte.
Nenhuma – repito, nenhuma – das pessoas com as quais conversei estava segura de
que a corte aceitaria a denúncia. Por que a dúvida, em face de provas de
genocídio tão abundantes? Justamente porque todos reconhecem implicitamente o
imenso poder de influência do imperialismo e do sionismo nos organismos
internacionais. Quando a CIJ acatou a denúncia, a África do Sul comemorou, o
Hamas saudou a decisão “que indiciou o Estado ocupante sob a acusação de
genocídio, e apela ao exército ocupante para proteger os civis, levantar o
cerco imposto ao nosso povo em Gaza e respeitar os se us deveres como força
ocupante no quadro do direito internacional e do direito humanitário”, o
Ministro da Justiça da Palestina, Muhammad al-Shalalda, afirmou que a decisão
do tribunal é “um sucesso para a causa palestina“. Al-Shalalda lembra
que esta foi a primeira parte do julgamento, e a segunda parte vai avaliar se o
que está ocorrendo na Faixa de Gaza constitui ou não o crime de genocídio. “Se
for alcançado um julgamento que conclua que Israel é legalmente responsável por
cometer genocídio, será obrigado a compensar todos os danos causados ao povo
palestino“, afirmou o ministro. Porém, para Netanyahu, a simples decisão da
CIJ de aceitar a denúncia é uma “mancha vergonhosa” na história da Corte e o
gabinete sionista, em uníssono, a repudiou veementemente, nos termos mais
furibundos.
A resistência
palestina e as lições da história – V
Não foi só isso, na última quinta-feira (1º/2) a sempre subserviente União
Europeia surpreendeu, e confirmou que vai manter os repasses financeiros à
Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (Unrwa),
acusada por Israel, EUA e Reino Unido de ligação com o Hamas. Um dia antes, o
ministro das Relações Exteriores da Noruega, Espen Barth Eide, pediu aos países
que exportam armas para Israel que avaliem suas ações ou corram o risco de
serem processados por participarem do genocídio contra os palestinos em Gaza. “Os
Estados que exportam armas para Israel devem reavaliar se são parceiros
efetivos no genocídio na Faixa de Gaza ou não”, disse ele. Lembrem-se que a
Noruega é membro fundador da Otan. Há parcos quatro ou cinco anos, os
posicionamentos relativos ao genocídio promovido pelos sionistas seriam mil
vezes mais matizados. O mundo está mudando em uma velocidade absurda. O plano
dos EUA, acalentado durante tantos anos, de “redesenhar o mapa do Oriente
Médio”, do qual constava como item fundamental o reconhecimento de Israel
por parte de importantes países árabes, está inviabilizado. O sentimento
antiamericano e antissionista entre os árabes atingiu níveis gigantescos, com
efeitos políticos práticos mesmo nas monarquias reacionárias árabes. Artigo de
Giorgio Cafiero, publicado no site The Cradle, informa que o think
tank pró-Israel, The Washington Institute for Near East Policy (WINEP),
conduziu uma pesquisa na Arábia Saudita entre 14 de novembro e 6 de dezembro de
2023, revelando que 96% dos cidadãos do reino concordam que “os países
árabes deveriam interromper imediatamente contat os de qualquer tipo com Israel”.
A resistência
palestina e as lições da história – VI
Aumenta também o apoio geral árabe ao
chamado eixo da resistência (Irã, Síria, Hezbollah no Líbano, as Forças de
Mobilização Popular no Iraque e o movimento houthi no Iêmen, entre outros), que
inclusive começa a ganhar contornos mais institucionais. Em janeiro, o
presidente da República Árabe Síria, Bashar al-Assad, propôs que o “eixo de
resistência” seja ampliado no Oriente Médio e além, a fim de consolidar sua
influência regional. Assad defendeu a necessidade de “trabalhar por maior
comunicação, harmonia e integração do eixo”, construindo ou fortalecendo “redes
de energia e transportes entre Irã, Iraque e Síria”. O
secretário-geral do Hezbollah, Sayed Hassan Nasrallah, em discurso feito em
dezembro, descreveu as ações pela Palestina : “Em 8 de outubro, o Hezbollah
entrou em batalha na fronteira norte da Palestina ocupada, que é a fronteira
sul do Líbano, em uma linha de frente com mais de 100 quilômetros de extensão.
Então, nossos irmãos da Resistência Islâmica no Iraque também entraram na
batalha atacando as bases da ocupação dos EUA no Iraque e na Síria, e com
ataques diretos contra a entidade usurpadora com drones, contra Eilat e outros
alvos. Então nossos irmãos no Iêmen também entraram em cena, com ataques de
drones e mísseis contra a entidade usurpadora, e com a iniciativa qualitativa,
enorme, grandiosa e muito influente que é o desafio no Mar Vermelho. Em todos
os sentidos da palavra (proibir a navegação de navios israelenses e com destino
a Israel) é realmente uma ação corajosa, sábia, épica e eficaz, no mais alto
grau&r dquo;.
A resistência
palestina e as lições da história – VII
Em outro trecho do discurso, Nasrallah colocou o dedo na ferida: “A imagem
do poder de Israel foi destruída. Este Israel que se apresenta a tal ou qual
país árabe que não vou nomear, prometendo que os protegerá e defenderá,
enviar-lhes a sua força aérea e o seu Domo de Ferro, que representa segurança,
serviços de inteligência infalíveis e tecnologias avançadas, esta imagem de um
Israel poderoso e capaz ruiu. E Israel está agora em uma posição de precisar
ser defendido. Então, imagine qual seria a situação de Israel se os americanos
e seus porta-aviões não tivessem vindo para o Mediterrâneo. Israel precisou
dessa intervenção dos Estados Unidos desde os primeiros dias (…) os
números comunicados por Israel (das perdas em batalha) são muito inferiores à
realidade. Na nossa fr ente libanesa, no norte da Palestina ocupada, Israel não
reconhece nenhum morto ou ferido, mas são milhares”. Enfim, da época em que
Mao Tse Tung escreveu o artigo citado nesta Súmula até a
vitória definitiva da revolução chinesa, passaram-se 13 anos de muito sangue e
sacrifício, no marco de 22 anos de resistência armada. Já os palestinos
enfrentam há mais de 75 anos uma duríssima batalha de libertação nacional, mas
agora travada em um novo ambiente geopolítico, que coloca em cena o que parecia
descartado: a possiblidade da vitória, desfecho que ainda cobrará,
infelizmente, um alto custo em vidas humanas, devido à irracionalidade,
ferocidade e intransigência do neofascismo sionista apoiado pelos EUA, o que só
pode ser mitigado com o engajamento cada vez maior da solidariedade
internacional na denú ;ncia de Israel e na exigência da liberdade para a
Palestina. Liberdade cujos contornos não estão claros, mas que já se consegue
entrever, surgindo em um horizonte nublado pela fumaça dos bombardeios em Gaza.
“Em meio às flores a jarra de
vinho / virar sozinho sem mais companhia / Erguer o copo à lua reluzente / e
mais a sombra agora somos três / Contanto a lua não saiba beber / e em vão a
sombra me devolva o corpo / por um momento seguem lua e sombra / Todo o prazer
é só uma primavera / Eu canto e a lua flana tremulando / Danço e se soma a
sombra redobrando-se / Despertos dividimos alegria / depois de ébrios cada qual
um caminho / Até não mais, desfeitos nós se apartam / rever-se um dia pela Via
Láctea”.
Poema “Bebendo sozinho sob a lua”, do
chinês Li Bai (701-762)
Tradução de Ricardo Primo Portugal e
Tan Xiao
Escolhas
e conflitos https://bit.ly/3Ye45TD
Postado por Luciano Siqueira às 14:11 Nenhum
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