Por Eduardo Guimarães
Sim, crimes hediondos sempre ocorreram. Relatos históricos
sobre crueldade e sadismo remontam aos primeiros sinais da civilização.
Assistências imensas acorriam ao Coliseu de Roma a fim de se deleitar com
espetáculo macabro em que felinos de grande porte estraçalhavam carne e ossos
de famílias cristãs inteiras.
Nos últimos dos primeiros vinte séculos depois de Cristo uma
etnia passou a ser sequestrada na África e arrastada até os segmentos Norte ou
Sul do continente que habitamos, sendo escravizada e torturada. Seres humanos
eram vistos como mercadoria, como animais a ser comercializados, como se fossem
cavalos ou bois.
O nazismo levou ao paroxismo a selvageria do homem contra o
homem. Seres inteligentes eram dissecados vivos, mutilados, transformados em cobaias
de laboratório simplesmente pela ascendência que nomes de família denunciavam.
Mas havia uma “justificativa” pervertida: diziam que agiam
“em nome da ciência”.
Dirão, pois, que a perversidade e o desprezo pelo gênero
humano sempre existiram.
Contudo, o homem sempre dedicou esse desprezo aos que
considerava “diferentes”, alienígenas, mas sempre por integrarem grupos
“raciais” considerados “inferiores” ou por pertencerem a grupos religiosos
considerados “malditos” aos Olhos de Deus.
O que estamos vivendo no Brasil, porém, é diferente. Não tem
uma dessas “razões”, ou melhor, um dos pretextos que psicopatas guindados ao
poder manipulavam para exercerem suas perversões e, com elas, contaminarem
mentes frágeis, como no Coliseu romano.
A guerra político-ideológica irracional que recrudesce no
país e que vê a ferocidade escapar dos recantos mais obscuros dos corações e se
espalhar pela internet antes de ganhar as ruas não tem pretexto, ainda que siga
a ideologia da ferocidade praticada sob pretextos.
Seria menos perturbador – porém igualmente inaceitável e
sempre perturbador – se fosse uma guerra sem quartel entre grupos étnicos,
religiosos, políticos, geográficos etc. Mas não é. A banalização do mal é que
assusta. A futilidade que impele grupos ou indivíduos a praticarem atos de
ferocidade que animal nenhum pode suplantar supera qualquer conto de terror já
escrito.
Entendemos – no sentido de ver um “motivo” – quando um
“serial killer” tira vidas com requintes de crueldade, entendemos quando um
criminoso é torturado nas dependências do Estado ao ser preso, para que
confesse o que sabe ou o que não sabe. Um verdugo é mentalmente doente e o
outro justifica sua selvageria com o “combate ao crime”.
Contudo, não entendemos – e começamos a nem ligar, a ponto
de nem procurarmos entender – quando um pai espanca um filho de oito anos até a
morte por temer que “vire gay” ou quando, após assistir a uma partida de um
esporte, um grupo de torcedores espanca até a morte integrante da torcida
adversária a frio, sem ser no âmbito de briga de torcidas.
A ideologia que apologiza o “politicamente incorreto”, a
popularidade do conceito de “pieguice”, tudo que transforma sentimentos como
comiseração ou respeito à dor alheia em uma espécie de crime de personalidade
parece embasar a insensibilidade e a convivência cada vez mais harmoniosa que
estamos estabelecendo com a barbárie.
Aceitando ou relativizando esse horror que já se integrou ao
cotidiano, conformando-nos em seguir em frente após saber que um pai matou a
pancadas o próprio filho por ver em sua recusa a cortar o cabelo sinônimo de
homossexualidade, coonestamos o caos.
Dizerem que tal horror “existe em toda parte” ou que “sempre
existiu” é o que apavora. É o endosso a que não paremos tudo até encontrar
meios de mudar tal situação.
Dirão, também, que o homem que matou o filho de oito anos é
vítima da ignorância. Nada mais falso. Quantos das classes mais abastadas – e,
portanto, com acesso à educação – cometem o mesmo tipo de crime por “diversão”?
E o pior é que nem sempre são jovens, com a “justificativa”
da imaturidade – sem esquecer que nunca chegará a maturidade alguma aquele que
age como besta-fera na adolescência.
Nas quase 24 horas que antecederam a composição deste texto,
analista e ativista político que sou não consegui me ater a mais nada. A
notícia sobre o pai que massacrou o filho porque não quis cortar o cabelo se
abateu sobre minh’alma no meio da tarde do dia anterior e ainda não foi
assimilada.
Aliás, torço para que nunca assimile horrores como esse.
Recusar-me a retomar tão facilmente a vida após tomar
ciência de tal horror, ainda que não seja uma decisão, mas uma consequência do
estado de minha psique, talvez seja a forma que encontrei para não sentir que
também estou aceitando esse processo macabro.
Com efeito, o que assusta não é a existência da selvageria
de homens ou grupos de homens, mas sua aceitação generalizada, a convivência
pacífica com o terror, o conformismo com atos desumanos. Essa é a novidade
macabra que suscita uma questão ainda mais perturbadora: quando – e por que –
perdemos a humanidade?
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