Por Marcelo Justo, de Jacarta, na site Carta Maior:
O congresso anual da Coalizão pela Transparência Financeira
(FTC, em sua sigla em inglês), que se encerrará nesta quarta-feira, em Jacarta,
é um abecedário do realismo mágico das finanças globais. Neste mundo paralelo,
as empresas não tem diretores, nem empregados, nem seres humanos, e um mero
edifício nas Ilhas Cayman é a sede de 18 mil multinacionais. “Estamos falando
de bilhões e bilhões dólares anuais subtraídos da economia global. São fundos
que poderiam ser destinados ao investimento social ou para infraestrutura,
ambos aspectos fundamentais para os países em desenvolvimento”, indicou Porter
McConnell, diretora da FTC, em entrevista para a Carta Maior.
Essa avaliação se mostra claramente num informe sobre o
Brasil e outras quatro “economias em desenvolvimento” da Global Financial
Integrity (GFI), uma das 150 organizações que formam a FTC e que tem membros em
40 nações. Segundo a GFI, entre 1960 e 2012, o Brasil perdeu cerca de um
trilhão de dólares entre esquemas de evasão fiscal e fuga de capitais, um
montante equivalente à metade do Produto Interno Bruto anual e quatro vezes
maior que as exportações do país.
O mais interessante é perceber como essa quantia foi se
duplicando a cada década. Entre 1960 e 1970, cerca de 24 bilhões de dólares
desapareceram da economia nacional, entre 2000-2009, essa cifra disparou a 500
bilhões – a medição considera valores constantes do dólar.
Esse crescimento constante da sonegação fiscal e da fuga de
capitais mostra de uma economia cada vez mais estruturalmente condicionada em
sua dinâmica e funcionamento pelas sombras que floresceram junto com o
surgimento de muitos novos paraísos fiscais e a liberalização financeira
mundial, observada a partir dos Anos 80. Prova de que as políticas
progressistas em matéria econômica e social não estão sendo suficientes: a
cifra seguiu aumentando entre 2010 e 2012. “O impacto foi sentido em toda a
economia, tanto nos tempos de bonança como nos de dificuldades. Um dos
problemas é que o investimento estimulado por um desenvolvimento positivo da
economia formal do Brasil acaba se retraindo devido ao crescimento dessa
economia subterrânea”, indicou Dev Kar, economista-chefe da GFI e coautor do
informe, em entrevista à Carta Maior.
Nesse quadro de massiva evasão fiscal, as multinacionais exercem
um papel central. Segundo o informe da GFI, a subfaturação e outros artifícios
“financeiros” tiraram do circuito formal econômico do Brasil cerca de 80
bilhões de dólares só em 2012, equivalentes a aproximadamente 4% do PIB. “É um
dos mecanismos mais usados na fuga de capitais ilícita”, relata Dev Kar.
O G20 e a OCDE
Mas o problema é internacional. O plano para eliminar a
evasão fiscal das multinacionais, apresentado pela OCDE neste mês de outubro,
em trabalho realizado em conjunto com o G20, apenas resvala em alguns aspectos
da questão. Segundo o diretor da OCDE, o mexicano Angel Gurría, a implementação
do plano possibilitará a recuperação de cerca de 250 bilhões de dólares em
impostos a nível global.
Entretanto, a visão dos participantes do congresso anual da
FTC, em Jacarta, é bem diferente. “É um plano cheio de falhas. É bom que
estejamos conversando sobre o assunto, mas a realidade é que não foi falado
nada ainda sobre os problemas mais graves relacionados a ele”, disse Porter
McConnell à Carta Maior.
O plano da OCDE, que o G20 ratificará em novembro, contém
alguns avanços como a obrigação das corporações a informar algo tão básico como
onde se produzem os lucros que figuram em seus livros contábeis. Essa
informação, que lamentavelmente não será pública, permitirá às autoridades
fiscais entender onde estão registrados os lucros das multinacionais que operam
constantemente com subsidiárias em paraísos fiscais para driblar a cobrança de
impostos.
Segundo o “The Economist” (não precisamente uma organização
de esquerda ou uma ONG), o acordo é uma oportunidade perdida, na qual os
escassos passos dados foram eclipsados pelos problemas pendentes. “O pior é que
a OCDE não avançou nada no caso das `entidades independentes´, no qual se
baseia a premissa fictícia de que as companhias e subsidiárias de um grupo
corporativo funcionam como entidades legais independentes”, afirma o The
Economist.
E este é, precisamente, o coração do problema.
A dimensão desconhecida
O mundo financeiro paralelo dos paraísos fiscais está
alimentado por três artérias: a corrupção, a lavagem de dinheiro (tráfico de
drogas, armas, pessoas, etc) e o comércio global. Ao contrário da percepção
pública, a lavagem de dinheiro e a corrupção, que costumam atrair todo o
interesse midiático, são os de menor peso: 20% do total. “O comércio mundial
representa 80% do total dessa fuga de capitais. Esse comércio está dominado
pelas corporações multinacionais que constituem ao redor de 60% de todos os
intercâmbios comerciais globais”, indicou à Carta Maior o representante da
Global Witness, Robert Palmer, outro participante da conferência em Jacarta.
O funcionamento interno desse mundo paralelo foi comparado
por alguns especialistas a um “sistema ecológico interno de centenas de
milhares de companhias”. Exemplos:
– As cem companhias mais importantes do famoso índice
Footsie de Londres têm mais de oito mil subsidiárias em paraísos fiscais.
– Nas Ilhas Cayman, um único endereço é declarado como sede
de 18 mil companhias.
– Em Amsterdam, a companhia Intertrust fornece serviços
financeiros para multinacionais: hoje, existem mais de 10 mil empresas
fantasmas registradas na capital holandesa.
Mais casos desse realismo mágico financeiro. As Ilhas
Virgens Britânicas, um pequeno arquipélago do Caribe com 28 mil habitantes tem
mais de 90 mil companhias – mais de três empresas por habitante – e é uma das
maiores responsáveis pelo investimento estrangeiro na China.
A mecânica é simples: uma companhia chinesa realiza seu
investimento “estrangeiro” em empresas fantasmas nas Ilhas Virgens, e depois, a
partir dessas empresas “estrangeiras”, reinvestem na China pagando menos
impostos e aproveitando isenções concedidas aos investidores forasteiros. No
jargão dos paraísos fiscais, essa manobra se chama “round trip” (viagem de ida
e volta).
O esquema é relativamente simples e não requer um mestrado
em contabilidade ou direito internacional. Mas, acredite ou não, nada disso
está sob o foco da proposta da OCDE.
* Tradução de Victor Farinelli.
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