Pairando sobre a posse de Donald Trump como 45º presidente dos Estados Unidos, nesta sexta-feira (20), estão repetidos alertas do “estado de exceção”. Xenofobia, islamofobia, misoginia, demagogia e, claro, os rumos de uma potência imperialista pautam as predições da política doméstica e internacional de Trump. “Forte, orgulhosa, segura, grandiosa”, foi no que ele disse que transformará “a América”, em seu discurso de posse. Análises não faltam deste fenômeno.
Por Por Moara Crivelente*
A campanha e a controversa eleição de Trump trouxeram à tona não só a contradição do sistema eleitoral estadunidense – em que a candidata com quase três milhões de votos populares a mais, Hillary Clinton, sai derrotada – como também um ambiente político em vertiginoso rebaixamento e o papel do chamado “establishment”, este espectro indefinido, mas aparentemente poderoso e onipresente, que havia investido suas fichas na candidata Democrata e que se via – será retoricamente? – confrontado por Trump.
O demagógico e messiânico discurso de posse do novo presidente estadunidense empata com as escandalosas acusações da mídia dominante nos EUA, partidária da campanha Clinton, de que a Rússia teria manipulado as eleições em favor do suposto amigo de Vladimir Putin – o monstruoso urso do Leste. Mas a era da “pós-verdade”, que não começou hoje nem há 10 anos, está normalizada.
Que não haja engano sobre qualquer “transformação”. Barack Obama investiu em feitos tão devastadores como o uso de veículos não tripulados (drones), matando milhares de civis no Paquistão, Afeganistão e Iêmen; no fortalecimento e expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – “máquina de guerra imperialista”, como diz a presidenta do Conselho Mundial da Paz, Socorro Gomes – e na modernização dos arsenais nucleares; no apoio militar e político a Israel mesmo durante o massacre de palestinos em 2014 na Faixa de Gaza ou a expansão de colônias ilegais na Cisjordânia; na devastação da Líbia e da Síria; na investida política e econômica contra a Venezuela; na ingerência e promoção de um golpe de características fascistas na Ucrânia, entre outras frentes.
De outro lado, Obama apressou-se por conceder o indulto a Oscar López Rivera – encarcerado há 36 anos nos EUA por integrar as Forças Armadas de Libertação Nacional de Porto Rico – e Chelsea Manning – soldada condenada por divulgar documentos oficiais ao WikiLeaks – entre 209 presos que tiveram suas penas comutadas ou receberam perdão; por reatar as relações diplomáticas com Cuba – faltando a devolução do território de Guantánamo ao povo cubano e o fim do bloqueio; por abster-se de vetar uma resolução no Conselho de Segurança da ONU contra as colônias israelenses, como de costume; e por perdoar bilhões de dólares em dívidas de estudantes nos EUA.
São muitas as notas sobre o legado do Governo Obama à frente de uma potência imperialista e, por outro lado, as previsões catastróficas – ou esperançosas! – sob o Governo Trump. No último caso, a principal esperança é o retorno a uma política externa isolacionista, em que os EUA interfiram menos ou nada nos assuntos internos de outras nações, como Trump indicou em alguns discursos, confundindo o respeito à soberania dos povos com a necessidade de os Estados Unidos gastarem menos em “guerras alheias”.
Mesmo assim, como em todo discurso presidencial estadunidense, o “destino manifesto” foi incluído. “Juntos” – os cidadãos estadunidenses – “determinaremos o curso da América e do mundo por muitos, muitos anos adiante. Enfrentaremos desafios. Confrontaremos dificuldades. Mas cumpriremos a tarefa”, disse o novo presidente. Combinando a isso sua retórica populista, afirmou que a transferência de poder não se dava apenas de Obama a ele, mas de Washington ao povo. “Povo”, podemos vir a descobrir, no dicionário Trump, significa o grande empresariado, clube do qual ele é parte, mas que se torna sujeito omisso em seus discursos sobre as vítimas “do establishment” que não colhem os frutos do sucesso – recorde-se que sua fortuna é estimada pela Forbes em US$ 3,7 bilhões (R$ 11,8 bilhões) e sua dívida, inclusive fiscal, foi tema de controvérsia na campanha eleitoral por ser um mistério.
No New York Times, um artigo que acompanha a posse de Trump lembra que, dentro de horas, ele pode começar a assinar ordens executivas para congelar regulações emitidas nas últimas semanas por Obama e a reverter políticas nas áreas da saúde, da imigração, entre outras. A insegurança e a incerteza também pairam no ar, intensificada pelos Democratas, inclusive por liberais que se aproveitam de uma confusão mal-intencionada da sua bandeira com a esquerda.
No sábado (21), um protesto deve reunir, segundo o New York Times – estarão seus editores participando da convocatória? – mais de 200 mil pessoas. É a “Marcha das Mulheres”, que deve atrair participantes de diversos países e pode ser assistida ao vivo aqui – e que um artigo na Forbes tratou como uma pequena empresa inovadora, devido à mobilização de apoiantes e às ações de angariação de fundos, despolitizando a iniciativa por todos os lados.
Mas além do rebaixamento da política, a normalização das exceções – ou das “emergências”, diz o crítico do Direito como projeto de poder, Mark Neocleous – é uma tendência em ascensão no mundo. Karl Marx, no "18 Brumário de Luís Bonaparte", e outros críticos do Direito de influência marxista abordaram a “segurança” como dispositivo que serve à garantia dos privilégios da classe dominante, neste caso, impondo a “exceção” para a suspensão de direitos, ainda de forma paradoxalmente “constitucional”.
O uso das mais avançadas tecnologias é a ambição de Trump para a “segurança” – contra os direitos civis e políticos já em grande parte suspensos desde o Ato Patriota decretado por George W. Bush em outubro de 2001, aproveitando a histeria da “guerra contra o terror” para, como apontado por Giorgio Agamben, facilitar a imposição do “estado de exceção” criando-se, retomando Neocleous, um “inimigo universal”.
Muito já se falou do muro com o qual Trump pretende bater o recorde israelense para isolar a fronteira estadunidense com o México, ou da sua proposta de banir a imigração muçulmana, mas a ideia de tonificar os “Estados Unidos da Emergência”, como escreveu Dan Froomkin no Intercept, mostra que o mundo e os estadunidenses devem intensificar a defesa dos seus direitos – seja à soberania, seja ao protesto. Entretanto, Obama já geria antes de Trump uma intensa atividade de “inteligência” – vigilância ou espionagem – doméstica e internacionalmente, que Edward Snowden revelou e, por isso, segue asilado na Rússia.
Em geral, as chamadas “democracias de baixa intensidade”, ou “democraduras” – termo usado ao sabor do freguês – têm sido conceitualmente recuperadas para dar conta do ambiente, inclusive no Brasil pós-golpe de Estado jurídico-parlamentar-midiático. Empresários do ramo da “segurança” e da vigilância estão esfregando as mãos com as oportunidades que se anunciam no mercado da repressão e do controle e a posse de Trump é um grande salão de ofertas.
*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e membro da Comissão de Política e Relações Internacionais do PCdoB
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