por André
Cintra
Publicado 04/03/2021 18:06 | Editado 04/03/2021 21:09
Em maio de 1992,
Mikhail Gorbatchov partiu com a esposa, Raisa, para uma temporada de descanso.
O local escolhido não podia ser mais emblemático: o rancho de férias de Ronald
Reagan, na Califórnia, Estados Unidos.
Passados menos de
cinco meses do sepultamento da União Soviética, Gorbatchov, seu principal
“coveiro”, confraternizava e posava para fotos com o ex-presidente
norte-americano – um dos precursores do neoliberalismo. Cúmplices na derrubada
do bloco socialista ao longo da década de 1980, haviam virado amigos. Ao
deixarem as tarefas presidenciais, compartilhavam a intimidade.
Nesta semana, em 2
de março, Gorbatchov completou 90 anos. Instalado num hospital de Moscou para
se prevenir da pandemia de Covid-19, o homem-bomba que explodiu a União
Soviética reuniu amigos numa videoconferência pelo aplicativo Zoom. De algum
ponto de seu isolamento, também recebeu mensagens de congratulação de líderes
ocidentais e até do presidente russo, Vladimir Putin.
Gorbatchov e Raisa (à dir.),
no rancho da família Reagan
Nada disso tornou
menos melancólico o aniversário do último presidente soviético. Ao atingir a
nona década de vida, Gorbatchov permanece longe do louvor popular. Com a debacle socialista,
os povos da antiga União Soviética passaram a viver sob um capitalismo dos mais
predatórios. Se há nostalgia hoje, não é de Gorbatchov – mas do período
soviético. Há quem a chame de “ressovietização”.
É na Rússia, em
especial, que esse saudosismo mais resiste à passagem do tempo. Conforme
levantamento feito em 2016 pelo Fundo de Opinião Pública, 58% dos russos dizem
que Gorbatchov “desempenhou um papel negativo na história” do país. Ao mesmo
tempo, pesquisas recentes apontam que mais da metade da população lamenta a
queda da União Soviética – o número chegou a 66% numa sondagem de 2018 do
Instituto Levada-Center. Curiosamente, a faixa etária em que o sentimento
pró-soviético mais cresce é entre jovens de 18 a 24 anos – nascidos, portanto,
após a extinção do país.
Da perestroika ao
fiasco
Sente-se cada vez
mais falta de uma história encerrada em 25 de dezembro de 1991, em cadeia nacional
de TV. Naquele Natal, diante das câmeras, Gorbatchov anunciou o fim da mais
épica das revoluções proletárias. No alto do Kremlin, a histórica bandeira
vermelha com a foice e o martelo, símbolo da Revolução de 1917, foi substituída
pela velha e empoeirada bandeira czarista.
Moradores de Moscou assistem, no
Natal de 1991, ao anúncio do fim da União Soviética
O governo
Gorbatchov – que prometia resolver a crise econômica da União Soviética com a
“liberalização” do regime e um “socialismo modernizado” – fora um fiasco. A
inflação crescia, os impostos também, a pobreza idem. Em 1990, a União
Soviética entrou em recessão pela primeira vez em décadas. Uma e outra geração
passaram a viver privações sem precedentes em suas vidas.
Como líder
político, Gorbatchov igualmente fracassou. Não por acaso, quando ele foi à TV
para renunciar a seu cargo, na prática já não havia mais União Soviética. Ao
eliminar os pilares da experiência socialista, o que ele conseguiu de realmente
notório foi desmantelar uma potência. Conflitos civis e políticos pipocavam
pelo território. Numa onda separatista, a maioria das repúblicas que formavam o
Estado soviético se tornou independente, incluindo a maior delas, a Rússia.
A União Soviética
produziu algumas das imagens icônicas do século 20. É o caso do hasteamento da
bandeira nacional, o “Estandarte da Vitória”, no Palácio do Reichstag, em maio
de 1945, na 2ª Guerra Mundial – a “Grande Guerra Patriótica”. Ou das cenas
memoráveis da corrida espacial, como o lançamento do primeiro satélite
artificial (o Sputnik 1) e do primeiro “cosmonauta” no espaço (Yuri Gagarin).
Ou ainda o “choro” do mascote Misha na cerimônia de abertura da Olímpiada de
Moscou, em 1980.
Filas em supermercados, uma imagem
típica da União Soviética nos anos Gorbatchov
Mas, sob
Gorbatchov, as imagens que vinham da União Soviética eram invariavelmente
desoladoras: a explosão do reator da Usina Nuclear de Chernobyl; as filas nos
mercados e nas lojas, com suas prateleiras vazias (que traduziam o colapso
da perestroika); o malsucedido “golpe de agosto” de 1991 (com
direito a um esdrúxulo sequestro do presidente); a chantagem que Boris Yeltsin
impôs a Gorbatchov para proibir o Partido Comunista; e o próprio anúncio do fim
da União Soviética numa noite de Natal.
Herói?
Gorbatchov foi
louvado pelo Ocidente capitalista e pelas elites internacionais. Mesmo no
cenário da Guerra Fria, o líder “comunista” soube conquistar a guarida da Casa
Branca, ganhou frequentes elogios do João Paulo 2º e recebeu até um Nobel da
Paz – tudo como outro dissidente, o polonês Lech Wałęsa. Em 2018, o cineasta
alemão Werner Herzog lançou um documentário chapa-branca, Encontrando
Gorbatchov, para retratar o último presidente soviético como herói.
A verdade é que
esses heróis do sistema, Gorbatchov e Wałęsa – um ex-agente da KGB e um
ex-informante –, foram, são e continuarão a ser renegados por seus
compatriotas. Em 1996, ao testar sua popularidade nas eleições presidenciais da
Rússia, Gorbatchov não passou de 0,52% dos votos válidos – um desempenho tão
humilhante que decretou o fim de sua carreira política.
Gorbatchov e Wałęsa, em foto de 2019:
os dois “heróis” do sistema foram renegados por seus compatriotas
Ainda assim, numa
entrevista ao jornal alemão Der Spiegel, em 2001, o “coveiro”
soviético fugiu a qualquer autocrítica, a não ser para reforçar o
anticomunismo. “Eu faria a perestroika exatamente da mesma
forma hoje”, afirmou. “Entrei para o Partido Comunista aos 19 anos, quando
ainda estava na escola. Meu pai tinha estado na frente de batalha, meu avô era
um velho comunista – e eu deveria explodir aquilo tudo? Hoje sei que deveria
ter explodido.”
Como Gorbatchov,
Wałęsa, hoje com 77 anos, volta e meia é paparicado pela grande mídia
ocidental, embora tenha sido uma peça inegavelmente menor no tabuleiro de
xadrez da Guerra Fria. Seu epílogo não foi menos vexatório. Ele tentou voltar à
presidência da Polônia em 2000, mas terminou a eleição com 1,01% dos votos. A
derrota antecipou sua aposentadoria.
Um e outro
traidores da causa socialista ainda vivem, dão entrevistas, são saudados no
Ocidente – mas amargam, ambos, os dissabores de não terem o respaldo dos povos
que eles afirmavam libertar. De Lênin, principal ideólogo e construtor da União
Soviética, ainda há cerca de 5.500 estátuas espalhadas pela Rússia. E de
Gorbatchov?
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