Publicado 18/11/2021 15:31
Criado no governo
FHC (PSDB) e democratizado na era Lula (PT), o Enem (Exame Nacional do Ensino
Médio) parecia consolidado como uma dessas políticas de Estado imunes às cores
e às ideologias do presidente de plantão. Duas décadas após sua implantação, em
1998, mais de 500 universidades brasileiras, públicas e privadas, usavam o Enem
em seus processos seletivos. Nem mesmo o presidente Michel Temer (MDB) – que
promoveu uma reforma conservadora do Ensino Médio – ousou mexer em seus
pilares.
Porém, como a
gestão Jair Bolsonaro é ávida em tentar destruir os mais diversos projetos
federais de viés popular, o Enem foi também alvejado pelo que há de pior no
bolsonarismo. Não é de estranhar a estapafúrdia declaração dada pelo presidente
na segunda-feira (15), durante sua viagem a Dubai, nos Emirados Árabes Unidos,
segundo a qual o Enem “começou a ter a cara do governo”.
Na realidade, desde
a primeira edição do exame sob sua gestão, em novembro de 2019, a “cara do
governo” já se manifestava – a começar pela incompetência. De modo precipitado,
mal o primeiro dia de prova havia se encerrado, o então ministro da Educação,
Abraham Weintraub, já falava em “melhor Enem de todos os tempos”.
Nem era necessário
esperar o fim dos exames para concluir, à época, que o Enem 2019 estava em
risco. Sete meses antes de sua realização, a empresa que imprimia os cadernos
de provas, numa operação das mais complexas, foi à falência, sendo substituída
às pressas por outra gráfica. A troca, porém, foi feita de modo irregular, sem
uma nova licitação, apesar da polpuda verba envolvida: R$ 151,7 milhões.
Do ponto de vista
político-administrativo, a situação era pior. O Inep (Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão do Ministério da
Educação (MEC) responsável pelo Enem, teve quatro presidentes apenas nos
primeiros 11 meses de governo Bolsonaro. Por cinco meses, o cargo ficou sem
ocupante. A instabilidade provocou uma série de contratempos, como o vaivém de
decisões com validades tão efêmeras quanto a permanência dos gestores.
Não deu outra:
houve tantas falhas e irregularidades naquela edição – problemas operacionais,
vazamento de provas, erros no gabarito, etc. – que o factoide do “melhor Enem
de todos os tempos” morreu de podre. O MEC recebeu mais de 200 mil queixas de
candidatos, muitas delas convertidas em representações ao MPF (Ministério
Público Federal). Cerca de 20 universidades e institutos federais tiveram de
adiar o processo seletivo, e o resultado do SiSU (Sistema de Seleção Unificada)
– que leva em conta as notas do Enem – chegou a ser temporariamente suspenso.
O fiasco de 2019
não serviu de aprendizado a Weintraub e Bolsonaro, que, em maio de 2020, no
auge da primeira onda da pandemia de Covid-19 no Brasil, decidiram manter o
calendário do Enem. As escolas estavam fechadas e o impacto das aulas remotas
era uma incógnita. Especialmente os estudantes mais pobres, sem internet em
casa ou com conexão de baixa qualidade, seriam prejudicados. Segundo o IBGE,
uma a cada quatro famílias não tem acesso nenhum à internet no Brasil.
“Sabe-se que as
condições de ensino à distância para os estudantes brasileiros são desiguais.
Afinal, 30% da população não possui acesso à internet, assim como 43% das
escolas rurais”, informou, em ação à Justiça, a Defensoria Pública da União
(DPU). “Além disso, cabe ressaltar que nem todos os alunos possuem livros
didáticos e materiais de estudo em casa.”
O ministro – este,
sim, genuinamente “com a cara do governo” – disparou: “A prova não é feita para
atender às injustiças sociais e, sim, para selecionar os melhores candidatos”.
Sorte dos estudantes brasileiros – e do País – que Weintraub caiu no mês
seguinte, deixando o ministério pela porta dos fundos, tachado pelas entidades
estudantis como o pior ministro na Educação na história. Mas o Enem foi mantido
e, conforme esperado, a abstenção, em plena crise sanitária, foi recorde: sem
protocolos de segurança garantidos, 51% dos candidatos não compareceram ao
primeiro dia da prova.
Do ponto de vista
do conteúdo, já na edição de 2020, Bolsonaro esbravejava que as questões do
Enem eram “ridículas” e “absurdas”, a despeito do incontestável despreparo do
presidente em assuntos pedagógicos. Era a senha, entretanto, para uma possível
e potencialmente criminosa ingerência do bolsonarismo.
O Enem 2021 está
previsto para os dois próximos domingos, 21 e 28 de novembro, mas as suspeitas
de irregularidade já contaminam sua realização. Neste mês, 37 servidores se
exoneraram do Inep às vésperas da aplicação da prova. Muitos deles alegaram
pressão psicológica e tentativa de interferência do governo nas questões da
prova – ao menos 20 perguntas teriam sido vetadas. Falaram, sobretudo, em
“fragilidade técnica e administrativa da atual gestão máxima do Inep”. Não há
de ser mera coincidência o fato de Bolsonaro, do alto de seu despreparo, ter
falado num Enem, enfim, com “a cara do governo”.
A denúncia de uma
possível ingerência no exame chegou ao Senado, onde o atual presidente do Inep,
Danilo Dupas Ribeiro, depôs em audiência nesta quarta-feira (17). “O senhor
ministro da Educação, Milton Ribeiro, e eu não tivemos em nenhum momento acesso
às provas”, defendeu-se ele. Bolsonaro também negou envolvimento.
Versões à parte, os
estudantes inscritos no Enem 2021 devem, tragicamente, se preparar para o pior.
Com o abrupto esvaziamento do Inep, as chances de falhas logísticas e
operacionais na aplicação das provas se multiplicam. A cada vez mais provável
interferência político-ideológica do governo abre margem para a judicialização
do exame. Embora seja a edição do Enem com menos inscritos desde 2005, o
desastre decorrente de tantos retrocessos é imensurável.
“O governo
Bolsonaro instalou o caos na Educação brasileira”, resumiu a deputada Alice
Portugal (PCdoB-BA), da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados nesta
quarta-feira (17). “Precisamos averiguar, com auxílio do Ministério Público e
do Tribunal de Contas da União, o que está acontecendo no Inep. O Enem é o
principal acesso ao ensino superior no Brasil e precisa ser realizado com
segurança e seriedade, o que não estamos vendo neste governo.”
Não há precedentes
de um governo que tenha atacado e destruído tantas políticas públicas no País.
Programas exitosos, como o Bolsa Família, de reconhecimento internacional,
foram extintos. Outros – caso do Enem – estão em processo de contínuo desmonte,
que compromete sua eficácia e, no limite, sua própria existência. Em tudo que
houver “a cara do governo” Bolsonaro, o Brasil anda para trás.
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