por Murilo da Silva
Publicado 13/01/2024 21:35
Foto: Marcelo
Camargo/Agência Brasil
O bolsonarismo foi retirado do governo federal, porém uma das mais conhecidas autarquias nacionais ainda padece de seus resquícios.
No dia 9 de
janeiro o Conselho Federal de Medicina (CFM) lançou uma “pesquisa”
para “entender a percepção dos médicos brasileiros sobre a obrigatoriedade da
vacinação contra a covid-19 em crianças de 6 meses a 4 anos e 11 meses”.
A própria ideia já
revela que algo está fora do lugar, pois não revela os critérios para que algo
nesse sentido seja realizado. Mas o caso chama a atenção uma vez que o Conselho
foi envolvido em diversas polêmicas durante o auge da pandemia pela defesa de tratamentos contra a doença sem comprovação científica.
Agora os gestores
acham de bom tom, para dizer o mínimo, observar o que a classe percebe sobre a
obrigatoriedade da vacinação que se mostrou eficaz e permitiu que o Brasil e o
mundo impedissem que a pandemia continuasse avançando.
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Gotinha, Ministério da Saúde lança campanha para ampliar vacinação
Como forma de
protesto, uma nota assinada por diversas entidades, entre elas a Associação
Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), repudia tal pesquisa e
coloca que o CFM “atenta contra a saúde e a ciência”. Confira a nota ao final
do texto.
Na mesma linha
crítica, o médico infectologista Roberto da Justa, professor da Universidade
Federal do Ceará e integrante do Coletivo Rebento – Médicos em Defesa da Vida,
da Ciência e do SUS, denunciou na sexta-feira (12), o presidente do CFM, José
Hiran da Silva Gallo, para que a pesquisa fosse imediatamente suspensa. A
denúncia foi apresenta no Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal
(CRM-DF), onde Gallo tem CRM (registro do Conselho Regional de Medicina).
Ao Portal
Vermelho, o médico Roberto da Justa, indica que a pesquisa de opinião
proposta não trará benefício algum, nem para a categoria médica, nem para a
sociedade. Por outro lado, ressalta que vacinação contra a covid-19 é uma
estratégia comprovadamente eficaz e segura, inclusive em crianças.
Ele ressalta que o
CFM, deveria substituir esta pesquisa por campanhas de estímulo à vacinação para
covid-19 em crianças, reforçando a importância da vacinação no SUS como um
direito à saúde.
Roberto da Justa.
Foto: Arquivo PessoalAlém disso, lembra
que a pesquisa não traz nenhum critério científico e é possível fraudá-la.
“A “pesquisa” não
possui metodologia adequada. A plataforma para a resposta é vulnerável, é
possível fraudar os resultados, qualquer pessoa pode responder quantas vezes
quiser no lugar de qualquer médico ou médica. Os códigos de validação, que
deveriam ser sigilosos, podem ser facilmente revelados. Ou seja, há uma quebra
de sigilo muito grave, ferindo preceitos éticos e a própria LGPD (Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais). Em outras palavras, a “pesquisa” está
inválida, seus resultados serão inúteis e não poderão ser divulgados. Mantê-la
em curso incorre em infração ética e legal, portanto precisa ser suspensa
imediatamente”, reforça Justa.
A médica
infectologista e membro do colegiado nacional da ABMMD, Ceuci Nunes,
compartilha do entendimento que a pesquisa não tem base metodológica e que
mesmo se for uma enquete não cabe a autarquia realizá-la.
Outro ponto de
observação é sobre a desconfiança que uma atitude dessa lança sobre a
vacinação.
Ceuci Nunes. Foto:
Arquivo Pessoal
“Quando o conselho
lança uma questão dessa, lança um questionamento sobre a vacina, sobre o
Ministério Da Saúde e sobre a ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que
prevê a obrigatoriedade de vacinação de crianças. Então, já é uma coisa muito
ruim”, ressalta Nunes.
Ela ainda explica
que a medicina não é feita pela opinião dos médicos, mas sim baseada na ciência
e sob indicação de especialistas em cada área em um comitê.
“O que o conselho
vai fazer com essa opinião, se a maioria acha que não deve ser obrigatório [a
vacina]. O conselho vai entrar contra o ECA? O Ministério da Saúde quando faz a
inclusão de alguma vacina no programa nacional de imunização, como é o caso da
vacina de covid-19 para criança, escuta um comitê técnico assessor que é
composto por médicos especialistas da área de imunização, de pediatria, de
infectologia etc. Os dados da vacina que esse comitê utiliza são muito
robustos, de que a vacina é segura”, revela a médica infectologista.
Arruda Bastos. Foto: Arquivo Pessoal
Compartilha dessa
visão o médico sanitarista e professor de medicina Arruda Bastos, que é
ex-Secretário da Saúde do Ceará e Coordenador da Secretaria Geral da ABMMD.
“Classifico a
pesquisa lançada pelo CFM como tendenciosa, anticientífica e contraproducente,
pois as perguntas formuladas têm o potencial de alimentar uma falsa
controvérsia em torno da vacina de covid-19, baseada em negacionismo
médico-científico e teorias da conspiração”, critica Bastos.
Código de Ética
A denúncia feita
pelo médico infectologista Roberto da Justa coloca que o Conselho Federal feriu
um princípio e dois artigos do Código de Ética Médica.
“O CFM é o defensor
maior do Código de Ética Médica. Infelizmente, com a promoção desta dita
“pesquisa”, está infringindo princípio fundamental e os artigos 100 e 103 do
próprio Código de Ética Médica, e o seu representante deve responder por isso.
O CFM é uma autarquia pública federal e está em flagrante descumprimento de
suas prerrogativas legais. Este fato deveria ser investigado pelo Ministério
Público Federal”, disse o médico.
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de vacinas infantis contra Covid é ‘herança’ de Bolsonaro
Os artigos e o
princípio a que ele se refere são: Princípio Fundamental XXIV (“Sempre que
participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico
respeitará as normas éticas nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos
sujeitos da pesquisa”); artigo 100 ( “Deixar de obter aprovação de protocolo
para a realização de pesquisa em seres humanos, de acordo com a legislação
vigente”); e 103 (“Realizar pesquisa em uma comunidade sem antes informá-la e esclarecê-la
sobre a natureza da investigação e deixar de atender ao objetivo de proteção à
saúde pública, respeitadas as características locais e a legislação
pertinente”).
“Inúmeros pleitos”
A repercussão sobre
a pesquisa fez o CFM se pronunciar em uma nota. Em oito tópicos, que podem ser
conferidos na íntegra aqui, o Conselho justifica seus procedimentos.
Em um dos pontos da
nota do CFM é colocado que: “A decisão decorre de inúmeros pleitos
encaminhados à autarquia buscando conhecer o posicionamento do CFM sobre esse
tema, pois a bula da vacina disponibilizada pelo fabricante condiciona sua
venda à prescrição médica”.
Segundo Justa, esta
alegação não faz sentido e as respostas da nota são piores que a própria
pesquisa.
“A vacina contra
covid está aprovada pela ANVISA e foi incluída no Calendário Nacional de
Vacinação. É segura e eficaz. Passou a fazer parte de uma política pública e
vem sendo aplicada em campanhas de vacinação no mundo todo. A nota toda do CFM
é pior que a própria iniciativa da dita “pesquisa”, diz.
Leia também: Brasil vai
incluir vacina de Covid-19 no calendário de vacinação anual
Para o médico, a
iniciativa e sua justificativa “expressam a postura antivacinal, anticiência e
negacionista do sistema Conselho de Medicina nos últimos anos”.
Para ele, no caso
de a justificativa ser atender a classe, que se apresente quais são as
reivindicações.
“Quais os critérios
deveriam definir uma decisão baseada em pedidos, uma vez que “inúmeros pleitos”
é algo genérico e carece de comprovação? Quais pleitos? Que o CFM publicize os
“inúmeros pleitos”, questiona.
Cobertura sem
vacina de covid-19?
Ao final da nota da
autarquia é dito: “O CFM ressalta à população e aos médicos
que empenha total apoio às ações empreendidas para ampliar a cobertura de
vacinas que ajudam na prevenção e combate a doenças, como poliomielite,
sarampo, meningite, rubéola e tuberculose, disponibilizadas dentro do Programa
Nacional de Imunizações (PNI), considerado o maior do mundo em sua modalidade.”
Ceuci também
enxerga que a nota só pirou as coisas e neste ponto específico trouxe outra
polêmica.
“Falam da
importância de vacinas para várias doenças e não incluem covid-19. Portanto é
colocado mais um motivo para as pessoas desacreditarem da vacina, inclusive os
próprios médicos, que muitas vezes não tem um estudo mais aprofundado sobre o
tema”, alerta.
O Conselho, que
representa mais de 560 mil médicos, é uma potência em representatividade,
argumenta a médica. Por isso deveria utilizar os holofotes para combater o
negacionismo, com orientação aos médicos e para a sociedade, uma vez que houve
queda das taxas vacinais em todas as frentes nos últimos anos por conta de
campanhas de desinformação, completa
Reacionarismo
Nas entranhas dessa
perspectiva atrasada que ainda remonta o governo passado o ‘bolsonarismo’
aparece como fantasma.
“Evidentemente o
conselho está seguindo a ideologia negacionista da vacina. Muitos conselheiros
são bolsonaristas, participaram de manifestações em frente aos quartéis, então
o Conselho está impregnado com essa ideologia do negacionismo”, dispara a
médica Ceuci Nunes.
“A pesquisa revela
a persistência de elementos reacionários, de extrema direita e alguns
bolsonaristas no Conselho, uma vez que a chamada “pesquisa” não atende aos
critérios científicos adequados. As perguntas enviesadas e a falta de
embasamento científico indicam uma abordagem que vai contra os princípios da
ciência e da saúde pública”, completa o médico sanitarista Arruda Bastos.
CFM atenta contra a
saúde e a ciência
Confira a nota na
íntegra a seguir:
Nota de repúdio:
Mais uma vez, o CFM atenta contra a saúde e a ciência
As entidades abaixo
subscritas vêm a público expressar seu repúdio à iniciativa da atual gestão do
Conselho Federal de Medicina de promover uma descabida pesquisa de opinião para
médicos acerca da vacina de Covid- 19.
Sob o pretexto de
“entender a percepção dos médicos brasileiros sobre a obrigatoriedade da
vacinação contra a Covid- 19 em crianças de 6 meses a 4 anos e 11
meses”, o CFM elenca perguntas contraproducentes e de caráter
claramente enviesado. A pesquisa parece não ter outro propósito senão o
de alimentar uma falsa controvérsia em torno da vacina para
Covid- 19, fundada em puro negacionismo médico-científico e teorias da
conspiração. Cabe esclarecer que a referida
vacina foi incorporada pelo Programa
Nacional de Imunizações (PNI) ao calendário vacinal da criança,
baseado em decisão da Câmara Técnica Assessora em Imunização (CTAI) do
Ministério da Saúde. Trata- se de um órgão técnico, composto por
especialistas, que analisam de forma sistemática e transparente os dados de segurança,
imunogenicidade, eficácia e farmacovigilância antes de emitir suas
recomendações.
No caso
da vacina de Covid- 19, foi bem demonstrado que os benefícios
suplantam quaisquer riscos, inclusive para a faixa etária em questão. Fomentar
questionamentos em torno da obrigatoriedade de quaisquer vacinas do PNI, além
de não ser ético, contraria o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente,
segundo o qual as vacinas do PNI são obrigatórias, sendo um direito básico da
criança e um dever do Estado.
Esperava- se, ao
contrário, que o CFM cumprisse o papel de reforçar junto à sociedade as
recomendações das entidades técnicas e científicas, entre as quais as
sociedades médicas, em um contexto de múltiplos esforços coordenados para
retomar as altas taxas de vacinação no Brasil.
Portanto,
consideramos desproposital falar em “direito” dos pais ou responsáveis,
tampouco em “autonomia médica”, como induz a tal pesquisa de opinião, quando o
que está em jogo é o direito da criança à proteção conferida
pelas vacinas. E quem compete atestá-las são as autoridades
sanitárias.
Neste ponto,
indagamos que uso fará o CFM do resultado de sua tendenciosa pesquisa? O
potencial uso de “dados” para questionar a política pública e a
ciência a partir de crenças pessoais e pesquisas de opinião não tem lastro
no melhor interesse social e é irresponsável.
Ademais, ao se
autointitular “pesquisa”, também enseja indagação em relação à aprovação em
comitê de ética em pesquisa, o que aparentemente não ocorreu, gerando
insegurança nos respondentes. Assim sendo, temos mais um motivo para a sua
imediata suspensão.
Esperamos, por fim,
que o CFM retome seu relevante papel de zelar pelas boas práticas médicas,
atuar em prol da Saúde e da Medicina, pautado pela Ciência, e que abandone, de
uma vez por todas, pautas negacionistas que tanto mal fizeram à população
brasileira nos anos recentes.
Associação
Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia – ABMMD
Associação
Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco
Centro Brasileiro
de Estudos de Saúde – Cebes
Sociedade
Brasileira de Bioética – SBB
Frente pela Vida
Sociedade
Brasileira de Bioética – SBB
Rede Nacional de
Médicas e Médicos e Populares – RNMMP
Coletivo Rebento
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