Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Vamos parar de fingimento e tratar as coisas como elas são.
A atitude de Joaquim Barbosa diante dos demais integrantes do STF é inaceitável
e pode comprometer o bom desempenho da Justiça.
Se isso é grave em qualquer circunstância, é ainda mais
grave quando se trata de um processo que admiradores do próprio Joaquim definem
como o “maior julgamento do século”.
Joaquim já havia demonstrado esse comportamento em novembro
de 2012, quando foi criticado pelo jornal O Estado de S. Paulo por uma atuação
que “destoa do que se espera de um ministro da mais alta corte do Justiça do
país”.
Cobrando “serenidade” por parte de Joaquim, o jornal ainda
escreveu que o presidente do STF “como que se esmera em levar um espetáculo de
nervos à flor da pele, intolerância e desqualificação dos colegas”.
A pergunta que esse comportamento obriga a fazer é simples:
queremos Justiça ou queremos espetáculo?
E qual espetáculo?
Aquele em que o presidente do STF dá a entender que “todos
sejam salafrários e só Vossa Excelência seja uma vestal”, como questionou Marco
Aurélio Mello?
Isso pode até ser útil para quem tem projetos políticos e se
confessa feliz de ver seu nome na lista de presidenciáveis, ainda que não se
apresente candidato.
Mas será bom para um julgamento?
A cena de ontem foi particularmente deprimente – e olha que era
apenas o segundo dia.
Debatendo recurso do deputado conhecido como bispo
Rodrigues, o ministro Ricardo Lewandovski defendeu a visão de que ele deveria
ter sua pena de seis anos e alguns meses revista para baixo. Por quê?
Por causa de uma falha ocorrida no julgamento, quando se
condenou o bispo – parlamentar pelo PL – e outros acusados por uma lei que não
estava em vigor no momento em que os fatos ocorreram. É muito natural que se
questione isso, num país onde a Constituição ensina que não pode haver crime
sem lei anterior que o defina.
Vamos prestar atenção. Não havia uma divergência de opinião
entre ministros. Havia um fato.
Em dezembro de 2003, por iniciativa do governo Lula,
aprovou-se uma legislação mais dura contra corrupção. Ela dobrava as penas. Foi
com base nessa lei que o Bispo Rodrigues, e outros réus, inclusive José Dirceu,
foram condenados. Só que o acordo entre o PT e o PL, e também entre o PT e
outros partidos aliados, foi consumado no ano anterior, quando a legislação era
mais branda. Se havia um componente criminoso nestes acordos, eles deveriam ser
julgados no momento em que os fatos ocorreram.
Este mesmo debate sobre datas até ocorreu durante o
julgamento, quando se debatia a pena de José Dirceu. Vários ministros lembraram
a importância da data do crime para definir a punição dos réus. Celso de Mello,
que teve um papel importante no primeiro julgamento, também se manifestou ontem
sobre o assunto.
Como você pode ver neste link, Joaquim deu ao tribunal a
informação, errada, de que as negociações entre Dirceu e o então presidente do
PTB, José Carlos Martinez, haviam ocorrido depois que a nova lei já estava em
vigor.
Mas isso era impossível, revelou-se mais tarde, porque
naquele momento Martinez perdera a vida em função de um desastre de avião.
Estava claro, ontem, que cabia debater questão. E também
está claro que, para além do destino visível do Bispo Rodrigues, o que se
debatia, também, era uma decisão que teria repercussão óbvia sobre o destino de
outros réus, a começar por Dirceu.
Vamos ler os diálogos, conservados pelo site Consultor
Jurídico:
Celso de Mello – Os argumentos são ponderáveis. Talvez
pudéssemos encerrar essa sessão e retomar na quarta-feira. Poderíamos retomar a
partir deste ponto específico para que o tribunal possa dar uma resposta que
seja compatível com o entendimento de todos. A mim me parece que isso não
retardaria o julgamento, ao contrário, permitiria um momento de reflexão por
parte de todos nós. Essa é uma questão delicada.
Barbosa – Eu não acho nada ponderável. Acho que ministro
Lewandowski está rediscutindo totalmente o ponto. Esta ponderação...
Lewandowski – É irrazoável? Eu não estou entendendo...
Barbosa – Vossa Excelência está querendo simplesmente
reabrir uma discussão...
Lewandowski – Não, estou querendo fazer Justiça!
Barbosa – Vossa Excelência compôs um voto e agora mudou de
ideia.
Lewandowski – Para que servem os embargos?
Barbosa – Não servem para isso, ministro. Para
arrependimento. Não servem!
Lewandowski – Então, é melhor não julgarmos mais nada. Se
não podemos rever eventuais equívocos praticados, eu sinceramente...
Barbosa – Peça vista em mesa!
Celso de Mello – Eu ponderaria ao eminente presidente,
talvez conviesse encerrar trabalhos e vamos retomá-los na quarta-feira
começando especificamente por esse ponto. Isso não vai retardar...
Barbosa – Já retardou. Poderíamos ter terminado esse tópico
às 15 para cinco horas...
Lewandowski – Mas, presidente, estamos com pressa do quê?
Nós queremos fazer Justiça.
Barbosa – Pra fazer nosso trabalho! E não chicana, ministro!
Lewandowski – Vossa Excelência está dizendo que eu estou
fazendo chicana? Eu peço que Vossa Excelência se retrate imediatamente.
Barbosa – Eu não vou me retratar, ministro. Ora!
Lewandowski – Vossa Excelência tem obrigação! Como
presidente da Casa, está acusando um ministro, que é um par de Vossa Excelência,
de fazer chicana. Eu não admito isso!
Barbosa – Vossa Excelência votou num sentido, numa votação
unânime...
Lewandowski – Eu estou trazendo um argumento apoiado em
fatos, em doutrina. Eu não estou brincando. Vossa Excelência está dizendo que
eu estou brincando? Eu não admito isso!
Barbosa – Faça a leitura que Vossa Excelência quiser.
Lewandowski – Vossa Excelência preside uma Casa de tradição
multicentenária...
Barbosa – Que Vossa Excelência não respeita!
Lewandowski – Eu?
Barbosa – Quem não respeita é Vossa Excelência.
Lewandowski – Eu estou trazendo votos fundamentados...
Barbosa – Está encerrada a sessão!
Embora não sejam uma novidade, as reações de Joaquim ocorrem
num momento preciso. Ao contrário do que se passava em 2012, quando a minoria
no tribunal era formada por vozes isoladas e muitas vezes se concentrava na
postura corajosa de Ricardo Lewandovski, em sua composição atual o tribunal
exibe uma formação menos favorável ao presidente.
Ninguém sabe até onde os ministros Teori Zavaski e Luiz
Roberto Barroso irão avançar no dever de examinar os recursos dos réus. Em
qualquer caso, não se prevê um alinhamento tão claro, as vezes automático, como
aconteceu em 2012.
Zavaski e Barroso demonstraram a postura de quem pretende
ser o verdadeiro juiz de suas convicções e suas sentenças.
Alguém acha que eles ficarão calados diante de uma
interpelação de “intolerância e desqualificação?” Como irão reagir caso se
sintam tratados como “salafrários?”
Em qualquer caso, não é uma questão de boas maneiras, vamos
esclarecer.
O problema não é pessoal, não é de boa educação, de
reverências nem de mesuras.
É um problema jurídico. Qualquer que seja sua motivação, as
reações de Joaquim têm um componente autoritário que atrapalha o debate. Passou
a hora de dizer que o presidente errava na forma mas acertava no conteúdo, como
procuravam argumentar, em tom compreensivo, sem disfarçar um certo
paternalismo, determinados comentaristas.
Suas atitudes mudam o conteúdo do julgamento. Sufocam
argumentos divergentes. Impedem o contraditório. Não permitem o exame sereno de
argumentos, de provas e alegações. Distorcem aquilo que se diz e aquilo que se
ouve. Intimidam.
Se a lei assegura aos réus o direito a mais ampla defesa, o
presidente de um tribunal tem o dever de estimular a diferença. Não pode, por
um segundo sequer, perder a isenção que está na essência da Justiça.
Deve ser o primeiro a preocupar-se com isso pois sua
obrigação é garantir o cumprimento da lei. Deve abrir espaço, até com um certo
exagero, para quem tem uma visão contrária. Em vez de desqualificar os
oponentes, deve agir, com toda lealdade, para que possam explicar o que pensam,
num ambiente de tranquilidade. Num julgamento que não deu aos réus o direito a
uma segunda sentença, o que já é em si preocupante e pode resultar em denuncia
em tribunais internacionais, o bom senso recomenda tolerância redobrada neste
aspecto.
Mas talvez esteja aí o problema real, que envolve uma
concepção de seu papel. Como já foi observado tantas vezes, Joaquim Barbosa não
se coloca como juiz do caso, mas como um promotor.
Em vários momentos, era confundido com um aliado próximo de
Roberto Gurgel, o ex-procurador geral, que em 2012 chegou a esperar pelo
recesso do STF para apresentar o pedido de prisão imediata dos condenados,
quando suas sentenças sequer haviam transitado em julgado.
É possível sustentar, com base no julgamento, que Joaquim
tem um ponto de vista unilateral, da acusação, e não tolera uma visão divergente,
o que deveria ser natural num juiz, cuja atividade é simbolicamente cega, no
sentido de isenta.
O que se pergunta, agora, é o que vai acontecer nesta fase.
Temos um presidente partidário, unilateral. Mas agora temos
um tribunal que tem uma nova dinâmica política. Tende para o equilíbrio, para
uma visão mais ampla do caso, capaz de considerar outros elementos e pontos de
vista do processo.
Relator do julgamento e, mais tarde, também presidente do
STF, Joaquim Barbosa concentrou os méritos da maioria das e decisões. Numa
revisão, como é natural, o que se faz é questionar aquilo que se fez no
passado. É hora de repensar, reavaliar, examinar mais uma vez. Não é
“arrependimento”, essa palavra carregada com tanta subjetiva. É humildade,
respeito pela própria consciência.
Isso é muito bom.
Talvez leve mais tempo do que muitas pessoas imaginam e até
gostariam.
Oito anos depois da entrevista Roberto Jefferson à Folha de
S. Paulo, deve-se admitir que sempre estivemos diante de um caso complexo.
Nesta situação, o que se quer é um julgamento bem feito, coerente com os
princípios do Direito.
Dentro e fora do tribunal, ninguém tem o direito de achar
que menos tempo equivale a melhor justiça.
A lógica desse raciocínio é o linchamento.
Vamos combinar que Joaquim não está só nesse comportamento.
Todos os dias surgem vozes capazes de uma palavra de apoio, de bajulação e
gestos vergonhosos pela falta de altivez.
Submetidos à lógica autoritária da execução sumária, da
mesma forma que se ajoelharam sem arriscar um único dedo mindinho para pedir a
punição de torturadores nem julgamento de assassinos que tinham o verdadeiro
domínio do fato da ditadura, não faltam críticos nem observadores empenhados em
assustar o tribunal.
Querem atemorizar quem se recusa a assinar sentenças
exemplares e punições humilhantes que já eram exigidas antes da primeira
sessão, em agosto de 2012. Levantam o fantasma dos protestos, da violência.
Depois de investir anos a fio na ampliação da ignorância, na
inverdade, na deformação dos espíritos, ameaçam os réus com a ignorância, a
inverdade, a deformação.
Colocando-se na posição de porta-vozes autodesignados da
rua, do protesto, da indignação, o que se quer é impedir, sim, que o STF faça
um exame de omissões, contradições e imprecisões que restaram na primeira fase.
Esta é sua obrigação, hoje.
Quem quer impedir esse trabalho está fazendo a verdadeira
chicana. Quer ganhar fora dos autos.
Isso porque nós sabemos que um exame razoável dos recursos
não pode ser feito nos 30 segundos que uma fábrica de refrigerante necessita
para anunciar uma nova mercadoria.
Leva tempo. Sabe por quê? Por mais que a maioria dos meios
de comunicação tenha feito uma cobertura no estilo programa de auditório, sem
distanciamento nem espírito crítico, nos meios jurídicos se reconhece que há
muito a se examinar e discutir. A ideia de que vários réus foram condenados sem
prova é mais frequente do que se dá a entender. A crítica à severidade das
penas também é muito comum.
Basta esperar pelo avanço das investigações sobre a Siemens
e os tucanos sob suspeita para ver quantos porta-vozes de nosso moralismo
indignado seguirão batendo palmas para a teoria do domínio do fato.
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